sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias XV

Segui-a sem comprar um livro que fosse e observei com interesse as suas linhas, enquanto íamos falando de livros. Se tivesse uma armadura e um cavalo era uma Valquíria e sem dúvida que montaria como uma. Comecei a imaginar mil e uma coisas até que chegámos a sua casa.

Uma vivenda típica daquela zona com grades de ferro forjado dos finais do século XIX a proteger as janelas, azulejos art deco, uma porta única de entrada com um vitral fabuloso na bandeira, que mostrava uma cena de batalha entre harpias e homens. Sugestivo…

Levou-me para o seu quarto e pediu-me para esperar. A janela, ampla dava para as traseiras onde se via um jardim de buxo com aqueles desenhos espiralados típicos que só se conseguem fazer com este tipo de sebe, aliás quem viu um viu todos. Na parede do lado direito uma grande estante de mogno castanho mimetizava tomos castanhos de variadíssimos autores.

Comecei a percorre com o olhar os títulos, para perceber qual seria o Arché da rapariga. Tulcídides, Júlio César, S. Tomás de Aquino, S. Bento, Dante Aghlieri, Petrarca, Dumas, Salgari, Eça… e tantos mais que fiquei boquiaberto. Folheei os mais sonantes e vi uma série de anotações em vários tipos de caligrafia e descobri que pelo menos três pessoas haviam lido a maior parte dos livros. Pela data cheguei à conclusão que a minha recém desconhecida amiga tomava o nome de Jocasta. Nem de propósito caros amigos.

“Estou a ver que já descobriste a surpresa… mas vamos ver de que surpresa gostas mais”. Estava de roupão e com o cabelo preto preso à amazona. Aproximou-se e beijou-me e o meu corpo todo respondeu àquele toque. Começamos a tirar a roupa e com olhos delirantes descobri que ela cobrira todo o corpo com uma camada de latéx que a tornava ainda mais sensual do que já me parecia.

Ao passar as mãos pelo seu corpo descobri algo estranho, que não tinha o seio esquerdo como as amazonas que o cortavam para melhor poder atirar com o arco. Fiquei doido e tive a melhor tarde e noite e tarde e noite outra vez que já tive na minha vida. De vez em quando nos momentos de descanso a minha Valquíria dizia-me ao ouvido “Tu és o homem mais sábio que conheço em todos os campos” ao que eu lhe respondia “Enganaste-me bem com aquela conversa dos livros, e eu a pensar que te estava a ensinar alguma coisa…”.

Não quis saber porque não tinha seio, resolvi arquivar isso na minha mente como uma coincidência para fortalecer a minha fantasia Wagneriana.

“Como sempre excedeste-te! Não sabes escrever pouco? É sempre a mesma merda, preocupas-te demais com os pormenores e com os preliminares.”

“Deixa estar, se assim não fosse não era ele. É a puta da mania de que escreve numa revista, mas bem vistas as coisas só lhe fica bem.”

Tântalo saiu como era costume em defesa do ataque de Minotauro que tinha que meter a sua colherada crítica.

“Gostei muito daquele trocadilho entre o Cérbero e o cérebro. Achei de uma qualidade a toda a prova. Como raio é que te foste lembrar disso?”

“Pois é, isto não é para todos, isto de ser bom tem que se lhe diga!”

Liga das Quecas Extraordinárias XIV

“Estou a ver que tem também uma visão muito crítica das leituras que faz. Gosto de homens assim, críticos e com ideias próprias. Pensei que tinha lido muito, mas pela amostra, estou a ver que ao meu lado você é a biblioteca de Alexandria e eu uma simples alfarrabista de rua” é escusado dizer que me babei por dentro, afinal que melhor elogio podia ter do que um à minha cultura “mas diga-me, gostava de ler um livro de fantasia relativo à mitologia nórdica, o que me aconselha?” senti-me poderoso, como é óbvio. O meu cavalo de Tróia entrara em grande estilo dentro da sua cidade e os meus soldados estavam já com o nervoso miudinho para fazer o saque.

“Sobre mitologia nórdica, confesso que não lhe posso indicar nada de especial” disse com humildade disfarçada, para não parecer muito seguro de mim e não afastar a caça “mas em contrapartida posso-lhe dizer que um senhor chamado John Ronald Reuel Tolkien escreveu uma série de livros inspirados nessa Mitologia.

“O Hobbit”, “O Senhor dos Anéis”, um livro só e não três livros como muitos pensam, ou o “Silmarillion”, a bíblia que explica o Génesis de um fantástico mundo, criado de raiz, com língua, mitos e geografia próprios, tudo inventado a partir dessa interessante história sobre-humana que é o panteão de Odin e seus congéneres. Tolkien leu na língua original as sagas nórdicas e a partir daí criou uma alegoria do mundo industrializado contra a tradição, apoiado nas suas vivências nas trincheiras da primeira guerra mundial.

É interessante lê-lo à luz desses acontecimentos e tentar ver os paralelismos que existem. Dá também um alento para ler as mitologias nórdicas e ver o que é original, adaptado ou criado.”“Já deu para perceber que percebes muito de literatura e não és um leitor muito comum para a tua idade. Desculpa estar a tratar-te por tu mas temos os dois a mesma idade, mais coisa menos coisa. Não queres dar um salto até minha casa, tenho lá algo que vais gostar de ver.” Não me perguntou, ordenou.

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias XIII

“Como começar caros colegas? Reportar-me-ei aos acontecimentos do dia 22 de Outubro deste ano insuspeito.

Nesse dia saíra como já era costume para fazer a minha actualização mensal na biblioteca municipal e nas minhas livrarias de eleição. Na biblioteca fiz a resenha das novas publicações e nas livrarias fiz a recolha das publicações dos livros que iria ler nos próximos trinta dias.

Às vezes não é fácil escolher o que ler, principalmente quando a oferta é tanta. “Memorias de mis putas tristes”, “O velho e o mar”, “O Pêndulo de Foucault”, “Juliano”, “Os jardins de Luz”, “o Conde de Monte Cristo”, “A Voz dos Deuses”… cada um ao seu estilo chamava por mim e tornava cada vez mais difícil a decisão do que levar.

Ao meu lado uma rapariga de cabelos negros olhava de soslaio para a minha indecisão. Continuei a ler as anotações na contracapa dos volumes para ter alguma ajuda até que a rapariga, como a revelação da pitonisa de Delfos, me esclareceu.

“Umberto Eco é um óptimo autor, se bem que de vez em quando se torna muito denso.” Falava tão rápido que a frase lhe soou a “UmbertoEcoéumóptimoautorsebemquedevezemquandosetornamuitodenso".
“Desculpe menina, mas está a falar deste livro em particular ou dos outros títulos que existem na sua extensa bibliografia?”

“Estava-me a lembrar especificamente de um… “A ilha do dia antes.” Pensei que seria um teste à minha cultura e como sabem que não gosto de me ficar quando o tema é a minha cultura literária, senti aquilo como um desafio e resolvi entrar no jogo.

“Se acha que esse livro é denso é porque ainda não passou os olhos por este. Estava a pensar comprá-lo para o reler.
A primeira vez que passei os olhos por ele foi quando tinha dezasseis anos e confesso que muita coisa me passou ao lado, mas ao mesmo tempo atraiu-me para tudo que tivesse a ver com este autor. Este sim, é na realidade denso. Começa pela temática, que misturando Templários, Rosa-cruzes, sinarquias, satanismo e afins a torna numa obra per si densa e hermética. A forma como Eco brinca com a escrita e com as personagens e como introduz informação de várias áreas que vai cruzando, ainda complica mais a leitura e não há dúvida que o faz de forma magistral.”

“Muito bem… já me deixou com vontade de pegar nele e começar a ler. Li o nome da Rosa e a impressão que fiquei depois de ter lido a ilha foi que ele adensa muito a escrita por isso é que nunca mais peguei… num livro seu.

Mas tem aí um dos meus autores favoritos. Já leu “A Criação”?” Mais um teste. Estava mesmo tentado a dar-lhe uma lição de literatura. Senti-me como Édipo em frente à esfinge, com todas aquelas questões, mas isso excitava-me. O Cérbero é o maior dos órgãos sexuais e mulheres deste tipo despertam-me o desejo.

“Gostei, muito embora é uma perspectiva demasiado americanizada da cultura europeia. Gore Vidal é um bom crítico se bem que de vez em quando exagere. Não há dúvida que minimiza a cultura grega em relação às culturas do Médio e Extremo Oriente suas contemporâneas, como calara intenção de dizer que os europeus estariam mais bem servidos se estudassem melhor as filosofias orientais.Não discordo que a cultura de história europeia não dá atenção nenhuma a parte oriental da história universal, mas também não é assim tão grave para Vidal dizer que os gregos eram uma cambada de corruptos e homossexuais e que os orientalistas, esses sim eram porreiros. Há que haver um meio-termo.”

segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias XII

Minotauro entrou logo a matar, talvez como vingança por C.M. questionar o seu conhecimento sobre mitologia nórdica. "Desculpa lá mas achas que S. Macário é uma referência mitológica?"

"Não acho, tenho a certeza. É claro que é uma referência mitológica! Ou achas que o cristianismo por ser a religião dominante deste país e tentar calcar as outras religiões não deixa de ter a sua mitologia? Se a Mitologia é uma expressão de uma ideia, doutrina ou teoria filosófica sob forma imaginativa onde a fantasia sugere e simboliza a verdade que se pretende transmitir, porque raio é que o cristianismo não se enquadra aqui? É isento? É uma religião como outra qualquer!

Os santos não são mais que prometeus, que não tendo roubado o fogo dos deuses, agiram em consonância com os objectivos e ideais de um Deus parte de uma trindade copiada doutras mitologias. Aliás, o cristianismo não é mais do que uma reciclagem de mitos de outras religiões e correntes filosóficas anteriores. O dilúvio existe em muitas religiões... Os dez mandamentos estão implícitos em todas as teorias discursivas das várias correntes que expicam a realidade. São tudo metáforas.

É claro que o S. Macário esteve em cima de uma coluna tempos sem conta para se purificar, e por isso se tornou mártir entrando pela porta grande no panteão cristão. Sim porque o Deus castigador e vingativo só existe no cristianismo. É o supra-sumo mas mais valia ter os defeitos que os deuses das outras religiões tinham e ostentavam. Assim torna-se num Deus hipócrita, já que ninguém pode acreditar que um deus não tem defeitos.

E mais, digo-te mais, se Deus fez o homem à sua imagem, eu olho à minha volta e chego à conclusão que Ele não deve ser nada mais nada menos que barro misturado com terra, mais dia menos dia apodrece e parte!"

"Bem, escusas de ser tão agressivo. Aceito perfeitamente a tua explicação. Embora seja católico reconheço que a minha religião cometeu os seus erros mas como tu dizes, e muito bem, o cristianismo apoia-se em correntes anteriores. É acima de tudo um conjunto de regras de conduta. Não me faz prurido nenhum reconhecer isso, só queria saber a tua justificação para a história de S. Macário."

"Está dito, e muito bem dito," conciliou Narciso "vamos continuar e se tivermos tempo voltamos a este tema no final.
Acho que chegou a minha vez."

domingo, 28 de novembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias XI

"Farrapos que do tecido vieste e pela reciclagem haveis de voltar ao tecido. Vou contar o que me aconteceu na noite de S. Macário, o estilita que passava a vida numa coluna a tentar perceber que raio é que ali estava a fazer, um pouco da mesma forma que Baudolino, no fim do livro, seu homónimo, fez, muito embora este joe estivesse à cata do dinheiro dos incautos que por ali transitavam.

Nessa noite saí, como é costume às quintas, à caça. Fui para aquela gafaria insuspeita que toma o nome de *******. Gafaria porque, como sabem, todas as gajas que não valem a ponta de um corno - desculpa a referência aos teus ornamentos Minotauro - as leprosas desta sociedade, vão lá parar. É certo e sabido que em altura de crise sexual, sem dúvida que esta é a melhor coutada da cidade.

Entrei como de costume já meio bêbado, porque não é nada barato um gajo emborrachar-se com os preços que são praticados, e impraticáveis para os nossos bolsos, neste antro.
Comecei com uma cerveja, virtuosa oferta de Ceres e comecei a prospectar aquele quadro que parecia pintado por Caravaggio nos seus melhores dias de putas e vinho. As bacantes estavam por todo o lado, e eu sentia-me Baco a escrever as linhas mestras desta partitura orgíaca. Clinicamente olhei e escolhi a vítima para essa noite. Ruiva, flamejante, transpirava tanto sexo que eu conseguia cheirar as suas feromonas a cinco metros de distância, pelo menos era o que o etilismo me deixava ver.

Tenho uma teoria acerca deste tipo de espaços de diversão nocturna. Todas as gajas com que entabulamos conversa são razoáveis, mas depois de as levarmos para a cama, no dia seguinte ao acordar, só nos apetece arrancar o braço, que lhe serve de almofada, à dentada. Acho que vi isto num filme, mas não interessa porque a mistura das bebidas com as luzes das dicotecas criam uma ilusão atraente e depois, no dia seguinte é o que se vê, vamos para a cama com Vênus e acordamos com a Medusa!

Eis pois que me decidi a seduzir esta Pandora e ver se lhe podia abrir a caixa... Fui ter com ela, e qual não foi o meu espanto quando cheguei perto dela, e fui assediado com violência tal, que até pensei que devia sair mais vezes à rua com o perfume que estava a usar.

De possível sedutor passei a seduzido, mas como o que é oferecido não deve ser recusado preguei-lhe um beijo de tirar o fôlego, e qual não foi o meu espanto, tirei-lho mesmo, de tal forma que a desgraçada caiu desamparada, desmaiada no meio do chão.

Acordei do estupor com uma voz masculina - Ah Campeão, puseste-a Knockout com um só beijo - fiquei corado e saí dali com ela ao colo em direcção ao hospital.

Adormeci na Cadeira ao lado da cama, e quando acordei, não precisei de roer o braço para me safar desta Medusa, já que este não lhe estava a servir de almofada. Que feia!!!
É a história da minha vida."

Liga das Quecas Extraordinárias X

Acabado o relato, Minotauro bebeu um gole da sua receita e esperou as reacções. após os comentários avulso acerca da validade da história, e fazendo-se a contabilidade das referências mitológicas, Narciso perguntou quem eram os anões de Asgard.
"Os ferreiros da mitologia nórdica. Por várias vezes aliaram-se a Loki, deus do caos e da loucura, mas segundo a lenda foram os artifíces das armas dos deuses, inclusive o martelo de Thor, Mjolnir."

"Isso não é muita banda desenhada na tua cabeça?" perguntou C.M., que de mitologia nórdica sabia o que tinha lido nas aventuras da Marvel.

"A mitologia a que te estás a referir é um bocado romanceada mas tem um fundo de verdade, aliás a única coisa que ainda não consegui tirar a limpo é uma coisa que tem a ver com a Espada de Surtur, um gigante daqueles a sério, correspondente aos titãs gregos, maléfico, mas isso fica para outra história. Porém a mitologia nórdica é extensa como todas aquelas que conheces, fundamentada e tão importante que J.R.R. Tolkien, que deves conhecer" ironizou, "estudou-a a fundo e toda a sua obra é inspirada nas histórias destas loiras divindades."

Narciso, como líder que era terminou a discussão e propôs que se passasse ao próximo relato.

Cloaca com o seu ar de cigano de Kusturica sacou dos seus manuscritos e com um esgar divertido aclarou a garganta, com uma tossidela seca de fumador e começou.

sexta-feira, 26 de novembro de 2004

Inferno


Saiu da discoteca com a acidulência a queimar o estômago, os olhos a arder nas chamas do Inferno de Alighieri e respeitosamente amaldiçoou a sua sorte.

Olhou ao redor e viu toda a esterquície humana a esvair-se pela porta pútrida daquele antro de dinheiro mal gasto e álcool na demoníaca proporção.

Meteu-se num táxi e à medida que o seu condutor se lamuriava da crise instalada por todo o lado, que não me dá uma noite de trabalho em condições há muito tempo, conduziu a sua mente para pensamentos mais elevados, procurando encontrar o que tinha perdido no meio da música.

Os ouvidos zumbiam num síndrome de dependência síncopado e o pulso aumentava quando pensava no que tinha acabado de fazer. Saiu na lota e entrou no primeiro tasco aberto.

Pescadores de caras vincadas por rugas de suor e sal, comiam a bucha da noite, afastando assim o frio ao mesmo tempo que consolavam o estômago. As vozes grossas de muitos anos de mar, criavam um ambiente sónico que lhe embalava a mente.

Sorriu ao pensar que mais uma vez ia trabalhar sem dormir.

Liga das Quecas Extraordinárias IX

“É claro, caros confrades, não tenho que vos referir, que todo o meu ego, bem como outras partes do corpo, rejubilou de alegria. Fiquei ligeiramente preocupado, já que o seu companheiro se encontrava na mesma sala que nós, e para fazerem idéia do respeito que difundia, afirmo-vos com veracidade, que Polifemo ao seu lado sentir-se-ia um qualquer anão ao serviço do panteão de Asgard.

Naquele momento de mata ou morre, a única situação que me assomou a mente semi-entorpecida pelo álcool, foi o gigantesco talhante a desfazer-me as rótulas à cutelada, como se de uma vaca me tratasse. No entanto o desejo foi sempre maior que a prudência e propus àquela Circe de olhos verdes que se encontrasse comigo no jardim.
Garanto-vos, excelsos e devotos desta causa tão nobre, que fiquei siderado de agrado ao constatar que ela correspondera ao meu pedido.

Estava uma noite fantástica com a lua em quarto de crescente e pensei que nunca mais me iria esquecer do momento que passaria em tão devotada companhia. Segundo os cânones da sedução e da conquista, avancei primeiro e degustei a ambrósia dos seus lábios, fazendo com que gemesse de prazeer e remorso pela traição que estava a levar a cabo.

Entrados em jogos mais íntimos, começamos a ouvir ruídos que se assemelhavam aos nossos, e com prazer unimo-nos na sinfonia, que o casal de amantes que não viamos mas podiamos sentir, num recanto do jardim ali próximo cumpriam com deslavada paixão, idêntica à nossa.

Cansados e satisfeitos com o nosso pecado, levantamo-nos e digo-vos que o destino tem insuspeitos caminhos, e deparamo-nos com o casal que reflectia o mesmo pecado de satisfação e cansaço, Não eram nem mais nem menos que uma belissíma morena de olhos verdes acompanhada pelo amante do momento, o gigantesco talhante, namorado do prazer da minha noite.

Olharam-se primeiro espantados e depois divertidos, deram as mãos e afastaram-se, e eu com as rótulas a gargalhar de alívio encolhi os ombros e propus uma bebida à morena entretanto confusa com aquela situação de loucos."

sexta-feira, 19 de novembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias VIII

Eram tiradas sortes para o primeiro relato a ser exposto, depois rodava à esquerda, sempre com solenidade, devendo cada um apresentar uma cópia em papel, manuscrita de preferência, par anexar à acta. Os Faustos indicaram que Minotauro seria o primeiro a expor.

“Cavalheiros desta mui nobre e sempre leal Liga: sem mais delongas, transmitir-vos-ei os acontecimentos que tornaram a noite de vinte e sete dos idos de Novembro, de um ano que não é para aqui chamado, num facto inultrapassável e acima de tudo digno de registo em tão ilustre panegírico alternativo a que pomposamente apelidamos de realidade.

Eis pois que, estando eu já cronologicamente exausto de seduzir, através de múltiplas e variadas formas a fêmea digna de um calendário Pirelli, comprometida de uma forma quase irreversível com um talhante, seu concubino de há longo tempo, e não vislumbrando forma do meu objectivo se concretizar, eis que a possuidora de toda a minha pulsão sexual, por um golpe inesperado do Destino, se embriaga.
Confidenciou-me ao ouvido que acima de todas as coisas, o que mais almejava nesse momento era devorar-me até ao tutano, nem que eu fosse uma pedra envolta em cueiros.”
Os oradores tinham que referir nas suas histórias situações de uma qualquer mitologia, certificando-as com bibliografia apropriada, se por um acaso não fossem do conhecimento comum.

Liga das Quecas Extraordinárias VII

O sigilo em torno das reuniões era total, embora por vezes tenham sido surpreendidos na sede por conhecidos de um ou outro, mas o vinho era a melhor desculpa para a presença dos cinco no mesmo sítio. As actas eram escritas à vez em toalhas de mesa, e guardadas num cofre portátil com combinação e chave, que desde sempre estivera à vista de todos na tasca de Anfitrião, que não sabia nem queria saber o que lá estava. Tinha consciência que era uma carolice dos rapazes que lhes reforçava a amizade e lhe preenchia as horas mortas da tarde e os bolsos com mais algum uma vez por mês.

O nome das envolvidas nas histórias nunca poderia ser referido, se bem que indirectamente havia algumas, como o Penedo de Tântalo, que era impossível esconder. Não eram permitidas descrições de actos sexuais ao pormenor, mas esta regra nem era muito difícil de cumprir, primeiro pela educação cuidada dos membros e depois porque não havia mulheres no grupo.

Os homens são naturalmente boca-de-incêndio, contam, falam e voltam a contar, com mulheres no grupo ou não, as suas aventuras sexuais. As mulheres por seu lado, escandalizam-se com a abertura dos homens em relação ao tema, mas quando estão acompanhadas só pleo seu sexo, chegam aos limites do pormenor, tanto é que, por vezes, os homens sentem-se por completo despidos pela melhor amiga da namorada com aquele olhar…”com que então perdeste cacete na noite de 23 de Novembro de 1933 por volta das 23:15!”

Liga das Quecas Extraordinárias VI

Narciso cumprimentou com alegria na voz e no coração, os amigos, e como era uso sentou-se no topo da mesa.

Anfitrião chegou com o seu copo e a multa. Nomeou-se o escriba da acta, e com solenidade sorrida, Narciso, declamou a fórmula de abertura.

“Aos doze dos idos de Dezembro de um ano que não é para aqui chamado, na sede deste incomum organismo, com a assistência etílica de Anfitrião e com as presenças dos ilustres membros Tântalo, Midas, Minotauro, Cloaca Massima, antes conhecido como Édipo, e eu próprio, Narciso, presidente desta pandilha de bêbados e putanheiros, declaro solenemente iniciada esta reunião da Liga das Quecas Extraordinárias. Que as putas e o vinho verde estejam convosco.”

Nos primeiros anos de faculdade o grupo, em conversa de ressaca, descobriu que cada um tinha a propensão especial para histórias de cama no mínimo rocambolescas. Numa tentativa de não as deixar escapar em qualquer tradição oral, resolveram criar reuniões mensais, para se rirem uns dos outros e passar para o papel as aventuras e desventuras de tão heterogéneo grupo.

Liga da Quecas Extraordinárias V

Em frente a Midas estava Minotauro, especialista em trincar mulheres comprometidas, era tão bom a fazê-lo que os cornos da mitológica criatura lhe subiram à cabeça, de forma que se empenhou ainda mais na tarefa.
Todos os homens que o conheciam com a namorada por perto coçavam acto contínuo a cabeça, já que Minotauro se gabava à boca cheia de caçar sempre a sua presa, só bastava tentar. O resto do grupo nunca percebeu muito bem como é que conseguia, já que não era nada de especial, mas o certo é conseguia sempre o que se propunha.
Para completar a equipa faltava só C.M., diminutivo de Cloaca Massima. No início da fraternidade tomou o nome de Édipo, porque pelo andar da carruagem até era capaz de saltar à espinha da própria mãe, mas depois, com o tempo, como ia para a cama com tudo o que lhe aparecia à frente, cagaram na mitologia e foi baptizado com o nome do maior esgoto de Roma antiga.
O seu lema era "com duas garrafas de vinho qualquer uma se torna numa bota da tropa, marcha".
Bem, só falta explicar a origem da alcunha Narciso... era tão vaidoso e egocêntrico que trocava a melhor das ninfas por uma Segóvia ao espelho.

quinta-feira, 18 de novembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias IV

Ao seu lado esquerdo estava Midas, que granjeara o nome por ter uma especial apetência pelo culto da imagem dos outros e por raparigas ainda a desabrochar. Note-se que não se metia com menores de dezoito anos, mas apanhava-as quando acabavam de perfazer esta etapa cronológica. Segundo palavras suas "eram mais apertadinhas e moldáveis". Por incrível que pareça, todas em que tocava, por muito pouco tempo que fosse, passavam de Gata Borralheira a princesa em três tempos. Nunca falhou uma que fosse, era o toque de Midas.

Alto, fisicamente irrepreensível, chamava a atenção a tudo o que fosse mulher, mas não era a todas que dava o privilégio de privar com ele, afinal, onde há fartura há sempre escolha.

Liga das Quecas Extraordinárias III

Tântalo, loiro, com o cabelo em desalinho, estava no momento a preparar o doutoramento num insuspeito tema que agora não vem ao caso. Ria com voz de tenor e olhos azul água. Era o mais novo do grupo, mas sem dúvida, o que melhor tirara proveito dos ensinamentos académicos.

Sempre cheio de ideias virtuosas, quando bebia deixava a imaginação cavalgar os devaneios do disparate, fazendo, no entanto, questão de tornar explícitas os mesmos. A sua inocência era uma capa para esconder os mais íntimos desejos que a sociedade proibia com mão de ferro, bem como a educação cuidada.

Ganhara o epíteto devido ao seu eterno caso amoroso. Rebolava a mesma namorada pela colina da vida acima há anos sem conta. Quando chegava a um certo ponto olhava para outra e lá lhe escapava o penedo por entre os dedos. O remorso fazia com que descesse a colina e voltasse a rebolar o batólito pela colina acima. Vezes sem conta acontecia, as escapadelas eram constantes, e o Penedo, assim chamava o grupo à eterna namorada, era uma apaixonada invencível, em linguagem de homem, crente.

Liga das Quecas Extraordinárias II

Cumprimentou Anfitrião, o dono da tasca, que com a sua penca proeminente reconhecia todos os bons clientes quando entravam na rua, e com simpatia fazia-os sentir em casa. Era um refúgio para estudantes com os seus preços sociais e arroz de feijão à terça-feira. Todas as faculdades da zona lhe conheciam o baixo preço e o cheiro a comida caseira que se
agarrava à roupa, ao corpo e à alma.

- Já cá estão os seus sócios, sorriu Anfitrião.
- Então mande para dentro o meu copo e a multa.

A multa era uma caneca de receita de vinho verde, feita com uvas que nunca viram arames, que era paga pelo último a chegar aos conciliábulos da primeira terça do mês, dia instituído das reuniões.

Escolheu a porta da esquerda, de batente a meio corpo, para a entrada em triunfo, muito de acordo com a sua personalidade exibicionista.

Encontrou-se na sala tão bem conhecida, onde inúmeras vezes matara a fome a crédito. Era um compartimento atípico das salas dos restaurantes e tascas da cidade. Não tinha televisão e em seu lugar autocolantes alusivos a tunas, associações académicas faculdades e afins, digladiando-se com fotografias crucificadas em placards de corticite, de convívios estudantis. Ao fundo, no canto, um aquário com um peixinho dourado, que se alimentava com os vapores da cozinha e as conversas díspares dos comensais.

E lá estavam os sócios.

terça-feira, 16 de novembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias


Narciso caminhava a passos largos, e quem o visse trajado e com um sorriso nos lábios indagaria o motivo de tão expressiva alegria que se divertia a difundir via telemóvel, no seu inglês fluente, para um receptor que até ele mesmo desconhecia.


Tinha tomado com hábito ligar para o seu voice-mail e contar toda a parafernália de ideias que lhe assolavam a cabeça. Condensava-as e falava com o seu amigo imaginário, no fundo o seu alter-ego, e mais tarde ouvia-se e colhia ideias para uma nova sementeira de palavras dispersas na revista literária da faculdade.


No fundo não era mais que uma fraude, fingia que estava inscrito, e como nunca ninguém lhe tinha pedido credenciais, frequentava aulas, organismos académicos e festas estudantis de pleno direito, com o peito inchado de vaidade e os tomates mirrados de medo.

Entrou no tasco para o encontro mensal que costumava ter com os colegas e grandes amigos, partilhantes de ideologias, ideias e ideais, já desde o primeiro ano.


sexta-feira, 8 de outubro de 2004

Haxixe IV

Quando se começa a escrever sobre um tema e se faz alguma investigação sobre este, descobrem-se coisas muito engraçadas, senão vejamos.

Na minha quest pelo haxixe, descobri que uma história narrada por Umberto Eco no Baudolino, é realmente fundada em factos reais e não uma delirante ideia que lhe surgiu numa noite de insónia descontrolada.
Assim foi com um gáudio fora do normal que descobri que a palavra “Assassino” deriva da palavra árabe “haššāšīn”, que se escreve desta forma حشّاشين, embora não interesse por aí além, e que significa numa tradução à letra, os comedores de haxixe. Lindo, não é?

Esta nem é a parte gira da história, porque este nome advém de uma seita religiosa fundada por um dos dois filhos, Nizar, de Hasan-Ibn Sabbah, entre 1090 e 1094. quanto a isto ninguém se entende muito bem, mas datas... é uma diferença de quatro anos, se fosse há cinquenta anos atrás quatro anos era muito, em novecentos e tal... em relação ao nome do pai também não se tem a certeza disso mas pode-se tentar esclarecer isto com mais exactidão no futuro.
O que interessa da historinha é que os membros da seita eram viciados em haxixe desde jovens, misturando o narcótico com mulheres bonitas, vinho e mel, eram convencidos que este cenário era uma aproximação ao paraíso muçulmano, e que se morressem a matar um inimigo de Alá, voltariam para lá instantaneamente. Não acredito muito na parte do vinho, afinal a religião proíbe-o.

Se isto não tem a ver com a Jihad, guerra santa ou na tradução literal luta, então já não percebo nada.

Hasan-Ibn Sabbah, era também conhecido como o “Velho da Montanha”, que é referido no Baudolino. Os alvos desta seita eram indiferenciados, tanto facções muçulmanas inimigas, como cristãos, os Cruzados. Aliás o território dos Hashshashin era perto do famoso Krak dos Cavaleiros, uma das mais belas fortificações do Médio-Oriente, pertença dos Cruzados.
Reza a lenda que os nossos amigos tiraram a tosse a Conrad de Montferrat, rei de Jerusalém, e que foram provavelmente contratados para dar o mesmo xarope a Ricardo Coração de Leão.
Em meados do século XIII deram um tiro no joelho, mataram Jigati, um dos filhos de Genghis Khan, e os Mongóis que não tinham o hábito de se ficarem, dizimaram quase todos os Hashshashin e destruíram as suas fortalezas. Correu mal.
Se quiserem saber mais façam como eu, procurem! Mas se calhar é interessante ver estes dois endereços.

sexta-feira, 1 de outubro de 2004

Haxixe III

Voltando a esta temática mas numa onda envolta em conteúdos de Semiótica, cabe-me agora definir a forma como se explora o haxixe pelos dois autores que referi em dois post com este mesmo título, nomeadamente Haxixe e Haxixe II.

Não é de todo estranho que esta substância que provoca o delírio, introspecção, até loucura, seja perfeitamente nomeada na obra de Alexandre Dumas. É explícito mas por que necessidade? Enquanto Eco se limita a chamar-lhe “mel verde”, Dumas dá ao boi o seu merecido e mundialmente conhecido nome.
Bem não é muito difícil de explicar se pensarmos que no século XIX o haxixe seria conhecido muito provavelmente por uma minoria, e ainda por cima intelectual. Poetas, prosadores, pintores, escultores, compunham uma elite que transmitia de certeza as suas novas descobertas, não só na sua arte mas também no resto, dentro deste círculo restrito.
É claro que Dumas necessitava de dar nome à substância.
Já Eco o faz de uma forma diferente. O seu romance é publicado na transição do século XX para o XXI, e sabe à partida que o seu leitor modelo de nível 1 tem na sua grande maioria este conceito na sua cultura. Ora bem... substância verde que provoca dependência, alucinações e pode ser comida à colherada? Cannabis? Cocaína? Heroína? Haxixe em Bruto!!!
Se o leitor modelo de nível 1 não o sabe, pelo menos desconfia e quando descobre de certeza que salta do banho a gritar Eureka pela casa fora. Não é difícil.

O que acontece é que Dumas tinha que dar um nome à substância, ou os seus leitores ficariam a pensar numa coisa verde e não teriam como nomeá-la, enquanto que Eco joga com o poder da informação da actualidade, dá pistas para toda a gente chegar ao nome. Qualquer procura na WEB acerca de Cannabis vai remeter para Haxixe e explicar que o composto mais puro é verde, a resina.
Mas fiquemos por aqui, por agora.

segunda-feira, 27 de setembro de 2004

Tecidos sexy?


Há tecidos que são naturalmente sexy...
A licra por exemplo, pela forma como se cola ao corpo e se torna viscosa ao toque faz-nos lembrar a textura de uma pele não natural mas muito próxima. É sexy instantaneamente.
Doutra forma o linho é daqueles tecidos que antes de se tocar na pessoa que o está a usar já estamos a antever a sensação de prazer táctil que experienciaremos. Este tecido é, de uma qualquer forma irreal que ainda não consegui perceber, semitransparente e ao toque reproduz aquilo que se imagina. É sexy por sugestão.
A ganga ao toque não é nada de especial, mas consegue ser muito sugestiva quando em contacto com outra ganga. É um tecido duro e áspero que em contacto com um similar provoca a ilusão de som, de electricidade estática. Todos os electrões se juntam numa harmonia de preliminares... É sexy por contacto.
Sugestivo, não?

sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Raivoso

Saiu de casa vespertinamente, com atitudes algo raivosas. Tinha estado, em sonhos, a matutar naquelas pequenas coisas, que todas juntas formavam uma gigantesca bola de neve, prestes a derreter com o calor da sua raiva.
Desfizera a barba com raiva e sentiu o sangue a aquecer-lhe a cara. Cortara-se. Merda, ponto de exclamação. É sempre isto, por isso é que fazer este tipo de tarefa lhe provoca raiva. Devem ser poucas as pessoas que se escanhoam por prazer.
Tomou café do outro lado da rua. No Bela Cruz, é claro. Para poder olhar, com raiva incontida, aqueles snobs amorfos e clonados, que nem sequer sabem a que sabe um bom café. Senão não tomavam café precisa e religiosamente ali! É para se poderem mostrar.
Comprou O Público e, raivosamente metódico, fez as duas palavras cruzadas e saiu. Com raiva, lembrou-se que não tinha lido o jornal. Como de costume aliás. Cento e quarenta paus para fazer palavras cruzadas e ler o Calvin. Raivoso meteu-se no carro e dirigiu-se à reunião.
Lá estava ela à espera dele. Sempre com aquele sorriso trocista de quem diz num subtil piscar de olhos, quero-te mas não te vou dar esse gostinho. Mais uma betinha armada aos caganatos. É assim que eu quero que se diga! Estou-me a cagar para os cágados, muito sinceramente! Realmente!
Era isto todos os dias. Uma menina da “socialite” (e é assim que me apetece escrever!), muito bem vestida, diga-se, olhava-o de alto a baixo, tirava-lhe as medidas e escarnecia do seu desejo. Todo o santo dia dava de caras com esta senhora. Impressionantemente olhava para ela, corava e arrancava. Até esse dia nunca tinha tido coragem para lhe dirigir palavra. Mas nesse dia raivoso, inundado por sombras violeta, parou no semáforo... e foi ter com ela. Com a mesma raiva incontida do despertar.
Riu-se. Nervosamente. O volume das calças tornou-se visível. Deu meia volta e corado voltou para o carro. Monologou e convenceu o chumaço a desaparecer. Arremeteu segunda vez e raios partam esta merda toda, pensou. O raio dos telemóveis que vibram! A sua relação com aquelas maquinetas sempre fora muito problemática. Nem por uma vez aquela volatilidade infernal lhe dera uma boa nova, ou um momento de descanso. Sempre aquele toque irritante, e ele impotente, voluntariamente não conseguindo abafar aquele misto de som e sensação. A guerra tinha sido declarada e não havia avizinhar de armistício. Atirou o telemóvel para dentro do carro.
Entretanto a senhora ria-se à gargalhada de algo que nos está a passar ao lado. Um pensamento estúpido, mas lógico passa pela cabeça do raivoso. Está-se a rir de mim. De certezinha absoluta. Atacou a rua pela terceira vez, com todas aquelas vontades de adolescente a florescerem lenta e turbilhantemente, com a adrenalina a secar-lhe a boca e a colar-lhe a língua, como se tivesse lambido uma pauta de Vivaldi, com as rosas da “Primavera” a arranhar-lhe impiedosamente a garganta e as “Quatro Estações” a cilindrar-lhe o estômago, numa azia em sol sustenido.
Engolindo o medo, num lampejo de coragem disfarçada com uma boa dose de machismo, perguntou-lhe se estaria interessada num café mais para o fim da tarde, que o desculpasse pelo atrevimento, que ele não costumava ser assim e que se calhar a menina tinha namorado, ou pior, era casada, e que não tinha o direito de a estar a incomodar desta forma e... retorquiu-lhe com uma gargalhada bem disposta e tão genuína que parecia retirada de uma farsa. Teria muito prazer, mas... não tomava café. Ele gaguejou, engoliu em seco, e reflectiu-se no seu espelho interior de miséria, vergonha, humilhação...mas terei muito gosto em acompanha-lo com uma água, disse num sorriso encantador, próprio de um flautista de serpentes.
Desajeitadamente marcou para as seis e tropeçou atabalhoadamente numa boca de incêndio e na lembrança de se ter esquecido de perguntar o nome à desconhecida. Raivosamente maldisse-se. Pensou com raiva que não tinha sorte nenhuma. Que teria que namorar com ela, que seria o fim do mundo, quer mais tarde ou mais cedo tudo iria acabar e que iria voltar à sua vidinha raivosa de sempre. Pensou que poderia ter as suas mãos em cima daqueles seios rijos como limões tisnado s pelo sol do mundo. Aleluia, finalmente ia acabar o mês de provações.
O telemóvel começou a medodiar raivosamente um excerto da Carmina Burana, a música do Old Spice, o perfume que lhe lembrava o avô. Enquanto pensava nele procurou o telemóvel em desespero por baixo dos assentos. Encontrou-o e esqueceu-se dele, do avô. Do outro lado uma voz feminina, bem disposta por sinal, dizia qualquer coisa relativa a um café e uma água.
Reconciliou-se com a maquineta e assinou o armistício.

quarta-feira, 8 de setembro de 2004

Não sei que título dar a isto...II

Acordou nessa tarde com a cabeça fora do sítio. As remelas nos olhos mostraram-lhe, sem surpresas, que nessa noite chorara durante o sono. O karaoke da noite anterior fora óptimo, com uma mulata a aplaudir-lhe sedutoramente ao ouvido, a sua prestação. Educadamente agradeceu, e ao contrário do que era hábito nem troco lhe deu.
Exagerara no Martini e sentia o estômago a amaldiçoar o excesso. Levantou-se a custo, insultando-se de bêbado e alcoólico, tomou a porta à direita e entrou na casa de banho. Pôs a água a correr na banheira, foi buscar um cigarro e os documentos que andava a transcrever e sentou-se na marquise. Abriu uma janela e o ar fresco da manhã ajudou-o a corrigir quatro palavras que tiveram o condão de explicar ao texto como devia estruturar-se para fazer sentido. Ao olhar pela vidraça viu o sol a ser enganado por uma nuvem mais atrevida. Pensou no sonho estranho que tivera, e que se tornava recorrente nessa última semana. Escolheu um CD da secretária e melancolicamente sorriu, com a escolha involuntária. Estamos saudosos de algo? “The Cult”. Escolheu a faixa e pôs no repeat.
O vapor indicou-lhe que a água já estava à temperatura. Deixou-se envolver pela água e as recordações tocaram-lhe o coração. Abriu a água fria e acordou para o dia que se avizinhava.
Saiu de casa com a ideia fixa de terminar com aquele sonho recorrente que lhe atormentava a alma.
Meteu o carro à estrada e conduziu pela marginal à velocidade do seu pensamento conturbado.
-CONTINUA DEPOIS DO INTERVALO-

segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Não sei que título dar a isto...

Acordou nessa manhã com uma sensação estranha, meio física, meio psicológica. Olhou para o lado e a cama vazia, já há tempo demais, provocou-lhe um arrepio na pele clara.
Levantou-se tomou a porta à esquerda e entrou na casa de banho, enquadrada pelo pijama masculino de tartan escocês. Rotinamente aninhou-se e ligou o rádio. Pôs um CD e arrependendo-se resolveu tomar um banho de nostalgia. Convidou Jeff Buckley e abriu a torneira. A água começou a correr e a percorrer-lhe o corpo como se fossem as mãos que tanto desejava. A sua imagem condensava-se no espelho e séries de imagens fotográficas percorreram-lhe a memória, desenterrando um passado feliz com um terminus brusco e doloroso.
As lágrimas misturaram-se numa parafernália agridoce, com a água que corria em pequenos feixes sobre o cabelo arruivado. Escorreram de mãos dadas, a doce e a salgada, em direcção a uma calma, que lhe devolvia o equilíbrio, que neste dia e nos últimos, estava cada vez mais forte e coeso, como se a corda bamba em que caminhava constantemente engrossasse à medida que a recordação ficava lá para trás, enterrada.
O toalhão turco secou-lhe as curvas do corpo, bem conservadas para quem estava no limiar dos trinta, e com um sorriso amargo afastou todas as lembranças do passado.
A indecisão sobre o que vestir ficou para trás 16 peças de roupa depois, e foi encontrar a mãe na cozinha com o pequeno almoço na mesa. Relatou-lhe o fluxo anormal de recordações, que lhe causava estranheza e um pouco de aflição.
A mãe era uma imagem, de puro brilho, fazendo lembrar com a sua boa disposição uma amora no início do Verão, avermelhada mas não madura, com muito para viver, saudando o mundo a cada dia como se fosse sempre resplandecente e feliz. Comentou então, fugazmente, que nas recordações deve dar-se importância às boas e reportar o rancor e a mágoa para as costas da vida, aprendendo, todavia, sempre com estas coisas más. Anos de amargura e pensamentos mesquinhos tornam a memória enrugada e mordaz para nós próprios.
Continuaram a conversa recordando as pequenas coisas boas que tinham alimentado óptimos momentos, naquele passado longínquo e tão próximo.
-CONTINUA NÃO SEI QUANDO-

sexta-feira, 27 de agosto de 2004

C.O.R.O. - Conquistas Originais da Retina Ocular II

Fingir que se é estrangeiro é uma técnica muito fácil, basta ler o papelinho com um sotaque esquisito e não dizer mais nada a não ser consentir com gestos. Agora... conquistar uma estrangeira é obra, mas não é impossível. Aí vão as frases básicas:

- Inglês - Dú iú uona faque uíde mi?
- Francês - És se que boles te coxere abéque muá?
- Holandês - Bil iú noukene mite mi?

Se elas quiserem, querem, se não, não querem. Mas muito cuidado, como a mulher é um bicho estranho, nunca sabemos o que ela está a pensar. Quando diz não é sim e quando diz sim é porque é sim. Devido a estas premissas é que este método é infalível. É claro que se um brutamontes vos partir os dentinhos todos, é porque ela estava a dizer não, mas não se conseguia exprimir correctamente.

Se na abordagem começar a dar para o torto, retire mas com dignidade:

- Já te disseram que és bonita?
- Já.
- Ah, então enganaram-te!!

- Queres dançar comigo?
- Não!
- Então ir para a cama está fora de questão!?

- Mas eu tenho namorado!
- Então pode-se juntar a nós...

- Vou chamar o segurança!
- Quem o Pedro ou o João?

O Coro, esse grande animal das estepes africanas... Oops, não era isto que queria dizer. O Coro esse grande argumento das mentes viciosas e profundamente necessitadas de relações físicas, guiões intermináveis e multi-facetados dos teatros nocturnos e soturnos dos nossos ideais lúbricos. Libertador das nossas ambições mais secretas como: ai a Cindy Crawford; podias ser a minha almofada; a Supertaça Europeia para o Futebol Clube do Porto!
Usem e abusem dos Coros, façam reviver este bastião da masculinidade, lutem até à morte pelo estandarte do romantismo, juntem-se aos bombeiros e vão roçar mato para o monte, bebam água e corram como os cavalos pelas pradarias de arranha-céus da vossa imaginação!

O texto é da exclusiva responsabilidade do meu alter-ego louco, declino pois qualquer responsabilidade nas palavras que aqui estão escritas.

C.O.R.O. - Conquistas Originais da Retina Ocular

Numa sociedade onde o Imperialismo machista já não é o que era, tendo ido juntar-se à tradição no mesmo ermitério, em grande parte devido ao fantasma da emancipação feminina, resolvi eu, vosso modesto escravo, acrescentar uma pérolas de sabedoria a uma das mais antigas actividades do mundo: o Coro, ou Coiro, como preferirem. Com a esperança que estas parcas linhas promovam o renascer do romantismo, dos jantares à luza das velas, das serenatas, da tentativa de seduzir a mulher mais feia do mundo sob o efeito do álcool, aqui vai.

Em primeiro há que definir este acto. É mais que lógico que não estamos a falar de um conjunto de pessoas que se junta para cantar, nem de uma parte arquitectónica de uma igreja. O Coro é antes de mais sinónimo de sedução. É a tentativa de convencer uma pessoa do sexo oposto ou não, a ter qualquer tipo de relação connosco, seja uma noite de copos, um beijo com todos, umas pequenas explorações tácteis (leia-se marmelada, em vernáculo), ou mesmo deliciar a outra parte, com a nossa vida super emocionante de lambedor de selos nos Correios.

Passemos então ao que interessa, como se faz!?
Vá para casa, tome banho, faça a barba ou a depilação, compre roupa peça emprestada. Por favor não tente exercitar o Coro depois de ter estado a cozinhar Tripas à Moda do Porto. Não coma cebola, nem peixe e muito menos alho. Saia à rua, vire à direita ou à esquerda, e dirija-se ao território de caça mais próximo (discotecas, bares, arraiais, etc.).
Chegado lá instale-se confortavelmente no balcão com um cotovelo apoiado, um cigarro no canto da boca e uma cerveja na mão correspondente ao braço que não estiver apoiado no balcão.
Fixe uma miúda feia. O quê, não quer!? Para chegar às bonitas e boazonas tem que se trabalhar, ou acha que quando entra numa empresa se passa logo a director? Tem que se começar por paquete ou algo do género. Olhe lá. Já está? Olhe para ela como se estivesse cheio de sono, com os olhos semicerrados. Quando ela olhar para si, pisque-lhe o olho esquerdo, já que está do lado do coração (é mais romântico mas elas nunca reparam no pormenor).
Ela não está a olhar? Ainda não reparou em si, não obstante a poça de baba em que o empregado escorregou? Deixe cair o copo. Ela está a olhar (esta resulta sempre), pisque o olho, pisque! Ah! Já reparou em si, olhou outra vez e sorriu-lhe ao reparar na sua subtil piscadela, mostrando uma dentadura perfeita se fecharmos os olhos à falta dos dentes laterais, mas veja o lado positivo, é uma porta para a sua alma. Vá ter com ela e aborde-a de uma forma muito subtil. Escreva num papel as seguintes frases:

- Como te chamas?
- Posso oferecer-te uma bebida?
- O teu apartamento é longe daqui?
- O que diriam os teus pais se te vissem na cama comigo?
- Sabias que os escaravelhos do Nilo fazem bolinhas com merda?

A aparente complexificação das frases não é casual, mas propositada. Note como a sua inteligência e desinibição parece evoluir de frase para frase. Se não levar uma bofetada entre questões continue, se chegar à última sem conseguir o que queria, é o mesmo que dizer “volte à casa de partida sem receber os dois contos da praxe”.
Se lhe aparecer uma sabidolas, finja que é dinamarquês ou kuala-lumpurense, e mostre-lhe uma frese de que cada vez. Se no dia seguinte ela lhe surpreender uma frase em português, alegue que a transferência de fluídos foi tão intensa que aprendeu uma lígua nova por osmose. Este papel pode servir em caso de embaraço, de cábula, quando não se sabe o que dizer a seguir.

Para além destas frases básicas há o pormenor da conversa propriamente dita. Comece por dar um nome falso, de preferência Quim. Nel, Ambrósio, Epanimondas, para ela pensar que o tem na mão; pergunte o nome, o nº de telemóvel (só no fim); diga-lhe que é a primeira vez que faz aquilo; que é virgem (resulta bem no Algarve na época alta); que é gay (é estranho mas resulta); que é engenheiro, porque todas andam ao cheiro do €; que é filho do conde da Bracalândia; e fale na terceira pessoa às betinhas e tias.

quarta-feira, 25 de agosto de 2004

Haxixe II

«Todas as manhãs o eunuco tirava de um certo armário uns vasos de prata que continham uma pasta densa como o mel, mas de cor esverdeada, passava diante de cada um dos prisioneiros e nutria-o daquela substância. Eles saboreavam-na, e começavam a contar a si próprios e aos outros as delícias de que falava a lenda. [...] passavam o dia de olhos abertos, sorrindo felizes. Pela tardinha sentiam-se cansados. Começavam a rir-se, umas vezes baixinho, outras imoderadamente, e depois adormeciam.1
[...] creio que o mel verde faz ver o que alguém deseja bem do fundo do coração.»2


Agora é a vez do meu tão adorado Umberto Eco referir o haxixe. Este é um pequeno parágrafo que escolhi deste livro, mas as referências ao mel verde multiplicam-se. De facto, Baudolino, mentiroso compulsivo, com a ajuda dos amigos, todos drogados com o misterioso mel verde, inventam maravilhosos mundos, como só o haxixe consegue fazer, à colherada.

ECO, Umberto, Baudolino, Difel, Algés, 2002, p. 87.
Idem, p. 88.

Haxixe

«Ele levantou a tampa e viu uma pasta esverdeada semelhante a compota de angélica, mas que lhe era totalmente desconhecida.1
[...] Aquela conserva verde não é nada menos do que a ambrósia que a mítica Hebe servia à mesa de Júpiter. [...] prove isto e os limites da possibilidade desaparecerão. Os campos do espaço infinito abrem-se para si, caminha com o coração liberto, em direcção aos reinos ilimitados de devaneios livres. [...] Sem se curvar aos pés de Satanás, será o rei e o dono de todos os reinos da terra.2
[...] É haxixe, o mais puro e não adulterado haxixe de Alexandria, o haxixe de Abou-Gor, o célebre produtor, o único homem, o homem para quem deveria ser construído um palácio, com a inscrição destas palavras: um mundo agradecido ao negociante da felicidade.»3

É assim que Alexandre Dumas, um dos românticos do Século XIX francês, descreve o Haxixe. Não é do desconhecimento geral, que a escrita do século XIX está recheado de referências a estupefacientes, e que o ópio e o absinto puro, que é branco e espesso, e não verde como o que vemos hoje a ser servido em qualquer bar, faziam as delícias de qualquer boémio desta época. Desconhecido para mim era que o haxixe fizesse parte dos hábitos da sociedade da altura. Foi pois, a reler “O Conde de Monte Cristo” que me deparei com este facto e deixo-o ao vosso cuidado, para ficarmos com a certeza que esta droga que é fumada em grandes quantidades nos festivais de Verão, tem uma história certificada pela literatura.

1 DUMAS, Alexandre, O Conde de Monte Cristo, Vol. I, Colecção Geração Público, Público, Porto,2004, p. 385.
2 Idem, p. 386.
3 Idem, p. 387.

terça-feira, 24 de agosto de 2004

Traição do Destino IV

Perdido nestas contemplações, deparou-se com uma cena deveras curiosa. Um casal de namorados insultava-se em altos berros no meio da rua, chamando para si a atenção dos transeuntes. Repentinamente o rapaz irrompe pelo corredor dos autocarros a gritar “sempre foste uma grande puta”, e é pronta e violentamente abalroado pelo 78 que vinha a descer a alta velocidade em direcção ao Campo 24 de Agosto. Parou uns metros à frente, completamente inerte, como se não tivesse sentido o que acabara de acontecer. Os curiosos aproximaram-se para ver o espectáculo, neste caso a tragédia, notando da vidraça do táxi, a falta dos corifeus para lamentar o sucedido. Lamentando dele para ele o sucedido, reparou que afinal os havia. Uns consolavam a menina, que entretanto se prostrara para arrancar o último suspiro ao desgraçado, outros perguntavam “como se passou esta desgraça”, e concluiu que “afinal os gregos eram uns gajos do caraças, criaram estilos teatrais que não precisam ser encenados para funcionar”.
Reparou que a menina dizia as deixas da praxe, e por momentos frio e distante achou aquilo ridículo, e perante o pasmo de todos dirigiu-se ao corpo e deu-lhe um chuto para se certificar que aquela inércia não era fingida. Realmente depois daquele impacto o homem só podia estar vivo a beber cervejas na esplanada cheia de miúdas a comentar o acidente e a mandar as primeiras piadas a frio.
Recompondo a compostura, insistiu mentalmente com o trânsito para que se demorasse e não o fizesse chegar ao ninho da viúva negra, já que de certeza que a mulher ia descobrir a trama e o ia comer vivo. Imerso nestas confrontações internas, esbofeteou-se acordando do estupor. Tinha que enfrentar o touro pelos cornos. Ir rapidamente para casa e resolver a questão de uma vez por todas. Indicou ao taxista um caminho alternativo. Pela primeira vez aquele caminho que sempre lhe facilitara a vida, tornou-a mais difícil. Doeu-lhe o coração à medida que se aproximava do destino.
O taxista falava da esposa de um futebolista e das farras que este fazia em casa. Desatento a estas futilidades continuou a remoer a sua traição e o destino daí decorrente. A quebra do Continuum provocada pela sua atitude, ia reflectir-se na sua vida, e na de todos de forma irremediável. Chegou a casa. O arrumador pediu-lhe a “moedinha para a cerveja”, e sendo ignorado, respondeu um cabrão de ricochete, que numa outra altura teria um potente gancho de esquerda encravado no nariz. Mas o nosso herói não estava para isso. Preocupava-o mais a fera enjaulada no seu lar cor de rosa.
Meteu a chave na porta e reparou que não estava trancada, Ela estava em casa. Sentiu o odor familiar de truta assada com bacon a entrar-lhe pelas narinas, e pensou que não conseguiria saborear o repasto. Um odor adocicado e ferrugento invadiu-lhe os sentidos e a estranheza fê-lo correr para a cozinha. Entrou de rompante, escorregou num líquido vermelho e caiu de bruços sobre a mulher. Sentiu a falta dos corifeus, das deixas da praxe, dela e de tudo. Não sentiu falta da amante. Olhou em volta à procura do 78, e viu-o claramente. Um rolo da massa ensanguentado, que provavelmente iria ser usado nele se por acaso ela sonhasse...! Mas não sonhava... nunca mais sonharia.
As lágrimas caíram-lhe e o amor por ela voltou... tarde de mais!

Traição do Destino III

Com este pensamento fixo devaneou a sua mente através do que ele lhe poderia dizer acerca de tão obtuso caso. Conhecia histórias do seu grande amor por uma colega de curso, dos seus percursos boémios da Praia da Rocha, com festanças orgíacas de não mais acabar, convenientemente regadas como manda a lei, por bons copos de Cabeça de Burro, e Duas Quintas. Ouviu muitas vezes com interesse a sordidez de casos de professores de faculdade, perguntando-se, se alguma vez diversificaria os seus horizontes de uma forma tão pérfida, e simultaneamente aliciante, porque convenhamos, os homens sentem um je ne sai quois por este tipo de coisas. Muitas lágrimas mancharam a sua caríssima camisa Pierre Cardin, ao ouvir as mágoas inconfessadas aos comuns mortais deste brilhante homem, que tudo tinha, mas que estava amputado do amor por sua própria culpa.
Mais uma prova da inexistência de um Inferno telúrico, já que tudo o que fazemos de mal, tanto aos outros como a nós mesmos, sente-se na pele, mais dia menos dia, e todos os dias da nossa vida, quando confrontados com o erro cometido. Era o caso do Professor, que devido a uma infidelidade do passado, numa altura em que a cabeça tinha o centro de gravidade deslocado, perdera a mulher da vida dele, e até hoje chorava baba e ranho por isso. Um Inferno, digo eu!

Traição do Destino II

Chegou ao Porto depois de muitas voltas à cabeça estômago e outros órgãos menos importantes. Cuidadosamente, tentara eliminar todos os vestígios da traição, e reviu vezes sem conta todos os passos que tinha dado. Calmamente, tanto quanto lhe era possível, e com a minúcia de leitor de livros policiais, verificou, ao espelho, se não tinha marcas, lavou a cara, cheirou a roupa. Lá estava o cheiro dela quase imperceptível, mas passava. Rasgou os bilhetes, e deitou-os ao lixo. Reviu mais uma vez o que tinha feito e sentiu-se tão preparado como um condenado Guilhotina.
Pensou em todas as perguntas, situações imprevistas com que podia ser confrontado e inventou desculpas para elas. Pensou em todo o conhecimento e experiência própria, ou emprestada, que a sua esposa teria.
Chamou um táxi. Entrou e mandou-o parar no próximo quiosque aberto. Quando parou, saiu com um - Espere! - e foi socorrer-se de tabaco. Não havia dinheiro no Multibanco da estação, por isso não fumava à hora e meia.
Voltou a entrar no táxi e pensou na melhor pessoa para esvaziar aquela confusão que lhe enchia o espírito. Sabia que um assunto destes devia ficar entre duas pessoas, mas isto queimava. Queimava-o por dentro ao ponto de necessitar urgentemente de alguém mais maduro, para como um farol o guiar, para porto seguro. Tirou duas passas no cigarro e enquanto observava a sua vida a desvanecer-se no fumo, encontrou o confidente certo.
- Estou sim?... Doutor? Sim sou eu! Está tudo bem consigo? Estava-lhe a telefonar para o convidar para comer uma francesinha! Amanhã à noite? Tudo bem, eu telefono-lhe! Adeus.
O Professor! Um senhor. Tinha sido seu professor em 1988, um ano antes de se casar. Conheceram-se nas aulas, jantaram várias vezes juntos, em convívios de professores e alunos, e mostrou-se um bom amigo desde o primeiro momento, não obstante o fosso de idades que os separava. Daí até o escolher para padrinho de curso, foi um tirinho. Também conhecia a sua esposa, que fora sua aluna, mas nunca houve muita convivência entre eles. Entretanto, muito lentamente, tinham perdido o contacto, cumprimentando-se à pressa quando se cruzavam, não sem um sorriso caloroso e a promessa de um jantar ementado a francesinha e cerveja.

Traição do Destino

Pensava num plano idóneo que não fizesse a mulher desconfiar do que se tinha passado nessas escassas horas, em que o seu espírito tinha estado preso àquela carne escaldante que se agarrava a ele em tentação sobre-humana. Conseguira evitar danos de maior, não por responsabilidade, mas por pânico e planos mal traçados, mas necessários. Foi aí que o pânico lhe voltou a toldar a razão. O telefone tocou. Mentiu atabalhoadamente à esposa, de acordo com o plano que tinha traçado, enquanto revia os horários dos comboios cuidadosamente, fazendo uma conexão válida entre linhas para encobrir a sua escapadela convincentemente.
Como um relâmpago tinha visitado aquela que agora, também na carne, era a sua amante. Estranho era que o choque e o bloqueio provocados pelo confronto, não lhe facilitaram a clareza de ideias e a frieza que lhe eram características.
Estava destroçado! Rezou para que o táxi se atrasasse, não chegasse a tempo, que houvesse filas intermináveis, enfim tudo que adiasse a sua chegada a casa. Também destroçado e desfeito, porque a vida que levara até ali era uma grande mentira. Uma capa que se detinha sobre ele e não lhe permitia respirar. A usual veia alegre e divertida estava soterrada por toneladas de convenções e aparências, que no entanto o tinham mantido iludido durante tanto tempo. Esta capa telúrica fora finalmente esburacada, pela vontade de correr atrás daquilo que lhe moía as entranhas lenta e dolorosamente.
A azia continuava a atacá-lo impiedosamente, o sentido de culpa engalfinhava-lhe as ideias e a vontade de ter cedido ao seu desejo e ao da amante fustigava-o por todos os lados.

sexta-feira, 13 de agosto de 2004

TLP VII

Olho agora para o casalinho. O Jack deixou-me assentar ideias. Rio-me com a cena. Ela levanta-se e vem na direcção da mesa dele. Ele fica branco, confundindo-se com a tela do projector que está por trás dele. Ela diz-lhe qualquer coisa, e ele, vendo uma rosa vermelha na mão dela, percebe que há uma terceira pessoa. O espanto volta a instalar-se, agora na face dela, olham para mim e eu, muito naturalmente, sorrio e pisco-lhes o olho. Sentam-se e começam a conversar com um sorriso nos lábios. Parecem parvinhos nervosos, mas que é que se há-de fazer? Três minutos depois, o barman, que me deu as rosas e me advertiu que aquilo não era uma florista, põe-me uma garrafa de Jack Daniel’s à frente com os cumprimentos do casalinho.
Sou mesmo podre, o que eu não faço por uma garrafa de bourbon.

TLP VI

- Quem é que o gajo pensa que é? Deve achar que é a merda do Caravaggio! Olha-me este agora a mandar rosas vermelhas. Daqui a pouco vem para aqui com uma caixa de bombons e uma garrafa de champanhe! Cá para mim é daqueles paneleiros que tem a mulher em casa, e anda para aqui no engate. Tenho a certeza que tem aliança.
- Já viste bem a idade dele? Tem para aí vinte e quatro anos... e coitado do moço, quem te diz que foi ele?
- Tenho a certeza que se não estiver anilhado, é porque tirou a aliança. Vocês vão ver a marca na pele. Deve ser burro que chegue, para se esquecer que o sol deixa marca. Não duvido.
- E como é que sabes isso? Andas muito bem informado, se calhar já fizeste o mesmo! Olha que isso ligado com aquela história do Brasil...
- Sabes que mais? Vou mijar!
Olho para a Sandra e agora é ela que está hipnotizada. Com as parvoíces do Rui, nem percebi que ela nem se dignou a abrir a boca. Acho que lhe bateu. Toco-lhe num braço e ela não tem reacção.
CONTINUA

TLP V

Calmamente e sem muito estrilho , volto-me para ver se realmente estou a ser observado. Sinto o olhar penetrante a despir-me mais uma vez. Tento sorrir mas fico gelado. Petrifico-me e sinto-me a ser banhado por nitrogénio líquido. Acho que se alguém me tocar, me vou partir em mil bocadinhos, como aquele do Exterminador Implacável II. Devia ter vergonha de sequer ter uma referência cultural destas na cabeça. Como diz um amigo meu, “o saber ocupa espaço”, e eu tenho tanta merda a boiar em forma de informação, que a minha cabeça já deve ser a porra da Cloaca Massima de Roma. Assim, sim, já gosto mais. Isto é uma referência cultural.
O empregado que me tem conspurcado o cartão com rabiscos, põe-me à frente uma cerveja e uma rosa vermelha. Diz-me em surdina que foi uma cliente que ofereceu. Fico parvo para a minha vida! O quê agora os papéis invertem-se? Olho para a mesa da jovem com a secreta esperança que tenha sido ela e não uma gorda qualquer, ou pior, a Tia da Mala. Raios! não consigo vê-la!
CONTINUA

TLP IV

Bem me parecia que havia marosca... Aquela morenaça que está lá ao fundo, está a olhar apara o meu amigo aqui em frente. Que se passa? Será que já se conhecem? Ele ainda não topou, mas quase de certeza que é isso. Olha, olha, já topou... Jovem! Hello! Um sorriso para a menina por favor. Fica-te bem. Não? Nada de sorrisos? É sempre a mesma coisa. Vê-se que a moça está interessada, e este camelo, como qualquer homem que se preze, consegue topar quando qualquer badalhoca está interessada, mas quando aparece uma com pinta, é claro que não. Até podia ser um comboio que ele não via na mesma. Chamo-lhe estúpido mentalmente e burra a ela. Deve ser daquelas que tem a mania que as mulheres é que devem ser abordadas pelos homens. Até acho que há um nome para isso... Românticas! Que raios, para que caralho é que as mulheres se emanciparam, alguém me explica? Se gostam de romantismo, os homens também! Esta monólogo está-me a dar cabo da cabeça.
- Dê-me mais um Jack Daniel’s, por favor.
CONTINUA

terça-feira, 3 de agosto de 2004

TLP III








- Não concordo. O Caravaggio era completamente doido. Um tipo que passava a vida enfiado nas tabernas com prostitutas e bêbados e só pintava quando precisava de dinheiro... acho que até chegou a estar preso...
- Mas dentro dessa loucura que até acho saudável, não podes deixar de concordar comigo, que o homem era genial. Já prestaste atenção às composições dele?
- Olha, e não é o que continuámos a fazer? Não continuámos nós metidos em antros de putas e bêbados? Como podemos recriminar um Caravaggio do século XVI que frequentava sítios desses, quando nós não fazemos melhor? Olha para aquela tia que ali está. Não achas que tem o seu quê de puta? Tenho a certeza absoluta que é o marido que lhe paga as contas todas, e que a senhora, a única coisa que faz , é ir às compras. É entrar em qualquer loja da Foz que vês uma igual a experimentar as roupinhas, e o maridinho, que a correr bem é só unicórnio, a passar o cheque para ela não lhe foder muito a cabeça. Assim ele tem a senhora em casa, amordaçada com artigos de luxo, e vai de férias para o Brasil, com amigos do mesmo calibre, para ir onde? Às putas!! Não somos nós uma cambada de bêbados saudáveis? Sistematicamente vamos a um bar e bebemos até nos acabar o dinheiro ou estarmos num estado em que o melhor é beber água. No entanto não produzimos o que o Caravaggio produziu, tenha sido preso ou não. Para além disso não podemos julgar à luz da nossa mentalidade uma sociedade de há 400 anos atrás. Os hábitos eram diferentes, o sistema era diferente e ele tinha a puta da mania que era diferente!
- Estamos muito críticos hoje...
- Lá está... sabem como é, tirem-me as pilhas.
- Mas porque é que passas a vida a falar mal das pessoas?
- O grande problema é que eu não faço isso. Achas que o que acabei de fazer é dizer mal das pessoas? Com um pouco de sorte até as estou a elogiar. Não sou o senhor da verdade mas também não sou burro nenhum. Pelo que tenho visto, setenta por cento das pessoas que estão neste bar têm qualquer coisa que se lhe diga. Olha, por falar nisso, o que é que este quer?
- Quem?
Quem faz esta pergunta é uma amiga minha, que veio jantar a minha casa com o meu namorado. É bonita, tem uns olhos lindíssimos e é muito charmosa. Tem um sorriso que é uma delícia, sendo muito expressiva devido à forma como usa as mãos para falar. O “Este” a quem o meu namorado se está a referir, é um rapaz moreno de grandes olhos castanhos que está especado a olhar para a Sandra. Coitado é mais um que caiu no feitiço dos seus olhos profundos. Aposto que o Rui se vai passar se ele continua a olhar daquela forma. Não é que tenha mal o moço estar a olhar, mas parece que está hipnotizado.
- Ainda bem que o gajo se foi, senão...
- É sempre a mesma coisa, é só garganta. O que é que lhe ias fazer?
- Perguntar se nunca tinha visto! Pelo amor de Deus, é sempre a mesma coisa quando saímos contigo. De vez em quando lá vem um parvinho que fica a olhar como se fosses a última mulher do mundo.
- Mas olha... este até é giro... e deixa ver... lá vai ele. Até tem um rabinho bem feito.
- Rabinho... nunca percebi porque raio é que vocês mulheres, dizem rabinho. Não percebo porque não dizem cú. Pronto, dizem tem um cú bem feito, ou não é assim que se chama ao fundo das costas? E quanto ao gajo, tenho a certeza que é mais um daqueles bêbados de que estávamos a falar. Vão ver que daqui a pouco anda por aí aos caídos. E não vai ser com água na mão de certeza, porque tem aspecto de a usar só para uso exterior.Deixo o Rui a falar com a Sandra e reparo que ela também não está a ouvir. Está a fingir que o ouve mas tem a cabeça noutro lugar.
CONTINUA


sexta-feira, 30 de julho de 2004

TLP II


Entrei encostei-me ao balcão. Um rapaz moreno está parado junto à casa de banho a fixar  qualquer coisa, que do angulo onde me encontro, não me permite perceber o que é. Espera aí! É aquele que há bocado estava a tentar irritar aquela tia da Foz, que me deu um encontrão com aquela carteira horrorosa, cujo nome não consigo pronunciar. Entro na casa de banho. Deixá-lo ir.
Começo a ouvir a conversa das duas tipas que estão ao meu lado. Se as julgasse pela aparência, nem sequer me dava ao trabalho de ouvir. A mistura de cores que comportam nos seus pequeninos corpos faria o arco-íris corar de vergonha. Com um ar muito pseudo-intelectualóide vão comentando a música. Até sabem umas coisinhas...O rapaz sai da casa de banho, passa disparado e senta-se na mesa vazia até agora, cheia com um livro, um maço de tabaco, um Zippo prateado e o indispensável telemóvel. Pede uma cerveja com sotaque do Norte. Tem pinta. Veste bem, com um estilo original e percebe-se que sabe que está bem, embora só. Espera. Alguém o está a observar, para além de mim, até é capaz de ter piada...
CONTINUA



TLP

 
São dez da noite e ela não promete nada de especial. Encontro-me circunspecto a observar toda a gente que entra e sai. Vou na segunda cerveja, e as caras que me rodeiam fazem-me desejar que se resumam a borrões de tinta azul marinho, espalhados pelo chão e pelo balcão.
A música versa qualquer coisa como “yeah, yeah”. Muse outra vez. Podiam por qualquer coisa menos depressiva. Olho para o DJ e faço-lhe sinal para mudar a música, ao mesmo tempo que faço o esgar de tudo_menos_Marco_Paulo. Ele ri-se e diz para esperar.
Duas músicas depois, entra uma senhora com uma mala Louis Vuitton, e a forma afectada como me olha, dá-me vontade de lhe vomitar para dentro da carteira, todo o nojo que sinto por pessoas afectadas e snobs. Pego no telemóvel e finjo que ligo para alguém, crio uma conversa imaginária e rio-me à gargalhada, só para incomodar a senhora. Consigo-o e rio com um gosto desmesurado e cruel. Pergunto-me porque raio é que as pessoas não podem ser autênticas sem ser julgadas pelo olhar afiado e acutilante deste tipo de gente. Que se fodam todas! Provavelmente está a pensar que estou bêbado. Que vá dar uma volta ao bilhar grande que eu não estou para me preocupar com a opinião das outras pessoas. Nunca me incomodei e não é hoje que vou começar. Para além disso com um cú daquele tamanho não deve cagar na sanita, mas sim na banheira. O meu espírito crítico parece um fórmula 1.
Vou à casa de banho e reparo numa jovem interessante, sentada numa mesa com um casal. A mesa é daquelas que se usa para  o jogo do copo, mas a jovem tem todo o aspecto que não de bruxa. Está a falar com as mãos e sorri ao mesmo tempo que o vai fazendo. Há qualquer coisa que me fascina... Olha primeiro de relance, e notando que eu tinha ficado estacado a observá-la,  devolve-me um olhar profundo que me deixa despido. O meu coração acelera como uma bicicleta sem travões numa descida íngreme. Deixo o estupor para trás e vou descarregar uma cerveja. Um cartaz cita Shakespeare “My greatest love is the result of my only hate.”, Romeu e Julieta. Há uma linha muito ténue entre o amor e o ódio, podemos rapidamente passar rapidamente do primeiro para o segundo, e raramente do ódio para o amor. Para além disso, o que amámos não deixa de ser aquilo de que mais temos medo.
Saio e reparo que ela continua a ter um vislumbre de interesse. Pudera, se eu visse alguém estupidificado a olhar para mim, também ficaria interessado. Quem visse a minha cara naquele momento, provavelmente acharia que eu tinha sofrido uma comoção cerebral. Não é que eu seja feio, mas momentos antes a minha cara parecia um lago num dia de vento, à espera da pedrada para quebrar a estaticidade.
Voltei para a minha mesa e pedi outra cerveja. Não é assim que se perde barriga mas... paciência. Percebi que estava a ser observado. Era aquela sensação, que mesmo quando estamos de costas, parece que nos estão a fazer pressão na parte anterior do pescoço.Virei-me para ver quem era...
CONTINUA

sexta-feira, 23 de julho de 2004

Saldos

Porque raio é que quando começam os saldos, eu estou sempre sem dinheiro? Tenho a mais absoluta das certezas que uma mente mesquinha, diabólica e maquiavélica, de certeza que é uma mulher, está todos os dias da minha vida a inspeccionar a minha conta bancária, e quando vê que estou sem dinheiro, telefona para as minhas lojas preferidas, aos berros e engasgada com uma gargalhada demoníaca, a dizer ponham as placas, façam descontos o gajo já não tem dinheiro, esperem até ver a cara dele quando passar aí na loja. Ah! Ah! Ah! Ah! (deve gargalhar-se com sotaque nosferatu).

Sou um Vampiro

Sou um vampiro. Anseio pelo sangue das pessoas. Invento mil e um estratagemas retorcidos para lhes roubar a essência da vida.
Dou por mim a vaguear na noite, ouço e sinto as pessoas a falar, farejo-as e observo com atenção todo e qualquer pormenor importante para a minha subsistência.
Saio do autocarro e sigo uma loiraça de 21 anos, que vinha a contar que ia fazer um escândalo com o gajo, quando chegasse à discoteca. Andou uns metros, olhou por cima do ombro, e senti a marosca descoberta. Furtivamente evaporei-me num salto felino, para trás de uma árvore, e sai logo a seguir a fechar a braguilha. Não fosse ela desconfiar das minhas intenções. Parece que não. Seguiu caminho. Segui-a e entrou no Tomate. Entrei também disfarçando um ar de habitué de sexta-feira à noite, à cata de uma mulher para levar para casa e aquecer-me os pés e outras coisas também embora com o síndroma de abstinência que me estava a roer, só a ideia de aquecer fosse o que fosse, me enojava. E com o que conhecia daquilo, jurara a mim próprio não fazer mais cenas tristes num local daqueles. Pensei nos engates de cotas que já se estavam a efectuar. Com nojo, pensei, que se todos fossem vampiros como eu, tudo seria melhor, e escusavam ter acções recriminadas por eles próprios. A composição da sociedade era a coisa mais estúpida e hipócrita que já senti a pesar sobre mim.
Pedi um Jack Daniels, e beberriquei, enquanto ia seguindo com os olhos, a loira deliciosa, que com um ar decidido, francamente duro, e sexy, procurava algo com o olhar, brilhante, semicerrado.
Não tardou e levou um apalpão de um quarentão de cabelo grisalho e ar de engatatão da feira da Vandoma, que se deslocou rapidamente ao Pedro Hispano, depois de ter chocado de frente com um copo de bourbon. Pedi outro Jack, e comecei a tratá-lo por você. Reparei que a loiraboacumóraioquehá-devirumdiadestesparameiluminar, continuava à procura da sua presa dessa noite. Amassada vezes sem conta até conseguir vislumbrar pelo canto do olho, o seu objectivo, sacou da sua side arm e cilindrou-o com uma bofetada que abafou a música. Ouvi-a claramente dizer que ele não tinha vergonha, que era um cafageste. Brasileirismo desnecessário. Acho que pulha estava mais adequado, ou até mesmo cabrão como que insinuasse que ele tinha um par extremamente retorcido de chifres, e que podia, porventura, pôr os boxers a secar num estendal providencialmente montado entre hastes.
Que não tinha o direito de lhe fazer aquilo, logo agora que ela era feliz. Que lhe roubara a esperança no amor. Como é que ela ia poder viver dali para a frente... saiu desesperada a chorar, e o vampiro do meu ego acordou.
Segui-a pela última vez e paguei atentamente a aglomerar todas as reacções da rapariga. Saí atrás dela e abordei-a com uma oferta de boleia. Que ela não estava nada bem, que se quisesse podia desabafar comigo. Muitos anos de experiência convenceram a rapariga a aceitar a simpatia.
Contou-me que namorava com a rapariga que estava com o seu melhor amigo, na marmelada na discoteca. Não fora ela que a traíra, mas sim ele que com a experiência de beto estúpido, achara aquilo um desafio e intrometera-se na sua relação. Agora dizia a plenos pulmões que conseguira comer uma fufa, e mantinha-a ao seu lado. Ganhara uma grade de cerveja e a admiração dos seus colegas de trunfa estúpida a cair sobre os olhos, bíceps horrorosamente deformados pelo culturismo, encaixilhados em pólos da Sacoor Brothers.
Deixe estar que são todos uns clones uns dos outros. E não se preocupe, há-de arranjar melhor. Pedi ao taxista que me levasse ao meu palacete na Foz, e levei-a para a varanda, que ela não estava em condições para ir já para casa. Sentei-me no meu cadeirão preferido, e preparei com cuidado o fim da partida.
No fundo não podia negar a minha natureza. Era um vampiro. Muito especial. Sugava todos os pormenores das pessoas. Era atraído por todos os pormenores sórdidos e interessantes da vida de cada ser humano, e convenhamos, os sórdidos são os mais interessantes. Ao longo dos anos desenvolvi um sexto sentido, que estava latente em mim, que me permitia julgar as pessoas e perceber onde estavam as histórias mais sui generis. A partir daí tornou-se um vício. Todas as noites tinha que sair de casa para curar a ressaca. Procurava uma pessoa, que escolhia criteriosamente, e deliciava-me a dissecar a história mais impressionante da vida dela. Sugava aquilo, com a sofreguidão de um naufrago morto de sede, rodeado de água salgada que não lhe serve de nada. Dia após dia, história após história ia sugando aquilo como se sangue fosse.
Muitas vidas vivem dentro de mim. Cada história que se interliga com as pré-existentes, e formam uma imbrincada teia de sentimentos, dores e felicidades...
Mas este caso... é diferente. Um desafio!
Falei-lhe ao ouvido. Disse-lhe que era uma mulher muito atraente. Fui buscar um Jack, deixando de parte as formalidades e voltando a tratá-lo por tu. Voltei a falar-lhe ao ouvido. Segredei-lhe qualquer coisa imperceptível até para mim, de tão baixo que foi dito. No entanto, ela percebeu-me perfeitamente.
No dia seguinte, juntei-me com os meus amigos, que me deram os parabéns na forma de uma grade de cerveja. Com as suas trunfas a cair sobre os olhos, perguntaram-me os pormenores...

A melhor amiga do Homem

Beber cerveja é uma arte. É duro mas é verdade. Não nos podemos abstrair de que o simples gesto de lamber a espuma e dar o primeiro beijo num fino acabadinho de tirar, é um momento mágico, melhor que o primeiro beijo que damos a uma mulher. Bem, a tua vida sexual deve estar a correr às mil maravilhas... A bem da verdade a coisa mais aproximada que tive com sexo nos últimos tempos, foi a injecção de penicilina que apanhei na semana passada.
Mas voltando à cerveja, há que pensar que as cervejas não são todas iguais e que servem para fins completamente diferentes. Por exemplo, a Guiness tem tantos nutrientes que constitui um pequeno almoço completo, e tão espessa que devia ser comida e não bebida. A Carlsberg, provavelmente a melhor cerveja do mundo, é uma cerveja para ser bebida à noite, sem comida. O seu sabor tem que ser simples, sem acompanhamentos, para não estragar a sua degustação. A Super Bock, a acompanhar francesinhas, a meio da tarde, de manhã, em qualquer momento é a melhor companhia do homem e uma alta promotora da mochila (leia-se barriga).

Campo Minado

Quase todas as pessoas que conheço usam perfume. Até aqui tudo bem, mas o que não consigo entender é porque raio as mulheres o usam em pontos estratégicos. De certeza absoluta que, quando estão a pôr a essência, estão com um esgar de sadismo a pensar no efeito que aquilo vai ter no sexo oposto.
Acho que todos os homens já passaram pela situação de estar com uma mulher e de repente, ter a urgente vontade de lavar a boca com álcool etílico. Pois é, acho que elas fazem de propósito quando põem o perfume no pescoço, ou entre os seios, é um repelente de certeza, vai um tipo todo lampeiro, e qual não é a surpresa, BLAAARGH, é a onomatopeia certa para exprimir o sentimento. É das piores rasteiras, traições, merdas que se pode fazer a um homem, tirar-lhe toda a pujança sexual com uma gota de perfume. Já as estou a ver a rir sarcasticamente com o campo minado que criaram.
Não é justo!

quarta-feira, 21 de julho de 2004

Vilar de Mouros II

 Mas afinal que é que Vilar de Mouros tem de bom para além de Cerveja, muita; poeirada, de todos os tipos possíveis e imaginários; pessoas sem tomar banho, parece que fazem questão; tabaco, mais tabaco e ainda mais tabaco; e música, para além dos mosquitos, cachorros quentes e pessoas desmaiadas?

Realmente, este foi provavelmente o Vilar de Mouros mais memorável, e se não foi vai ser. Primeiro o Peter Gabriel está quase a bater as botas; o Robert Smith já nem usa maquilhagem para dar aquele ar de Góticomaismortoquevivo, aliás está morto e ainda ninguém lhe telefonou a avisar; e quanto ao Bob Dylan... acho que sou uma das muitas pessoas que está convencida que ele nem esteve em palco, porque muito sinceramente não o vi, e ele fez questão de apagar os monitores laterais para preservar a sua mitificada imagem. Por isso vou dizer, daqui a alguns anos, que estive nos últimos concertos destas três personagens.Quanto aos outros, bem... Enquanto que todos os participantes padeciam de um problema de mosquitos, a Macy Gray debatia-se com um grave problema de ratos, porque com aquela juba... sinceramente nem me lembro da música, de tal maneira estava compenetrado no cabelo da senhora. Os Chemical Brothers fizeram jus ao nome, porque só quem mete muitos químicos para dentro é que consegue fazer aquele tipo de música. P J Harvey, estava muito ocupado a tentar levantar dinheiro e foi com grande pena que não vi. E depois temos mais qualquer coisinha que para mim foi o verdadeiro FESTIVAL: Toranja, muito bom, e os Clã arrasaram, transformaram o recinto numa discoteca!!!! Brilhante!

terça-feira, 20 de julho de 2004

Vilar de Mouros


Quem não foi devia ir. Quem já foi devia voltar. Quem esteve lá este fim de semana devia ter juízo e estar a dormir! Não há explicação possível para tal estado de euforia que contagia pessoas de todos os credos, idades e mentalidade anarco-social. A cerveja e os vários tipos de drogas que por lá se vêem não são desculpa suficiente para todo e qualquer tipo de cenários que se constróem de um momento para o outro.
Primeira regra de Vilar de Mouros, não há coincidências. Todas as pessoas que se encontram lá não o fazem ao acaso, há uma arquitectura sobrenatural que faz com que aquilo que procurámos não venha ter connosco, e as companhias indesejadas, vulgo cromos, colam-se a nós como cola, parafraseando um amigo "se fossem moluscos eram lapas". Não falo ao acaso, já que um cromo, perseguiu-nos desde a primeira noite aparecendo nos locais mais insuspeitos, acreditando piamente que eu era holandês, mea culpa, e sempre que eu mencionava esta personagem, lá aparecia ele do nada. Foi visto pela última vez em direcção à festa de Trance agarrado a um camião do lixo. Espero que tenha sido despejado bem longe. Perguntaram-me a certa altura se eu não me perdia dos meus amigos, ao que respondi que eles me encontravam sempre, quando acabei a frase lá vinham eles na minha direcção, o que provocou a gargalhada geral, já que isto estava sempre a acontecer, nos momentos mais estranhos.
Pior ainda foi quando descobrimos que éramos mais conhecidos que o termómetro, eu sei que não é assim que se diz, mas quando tentei dizer a frase correcta, não me conseguia sair a palavra tremoço. Coisas da vida.
Aconteceu este episódio numa das muitas barracas de SuperBock do recinto quando uma menina perguntou ao Pedro, que lá foi sozinho, se "os outros dois já tinham desistido". Foi uma constatação de que devíamos ir lá imensas vezes, mas não nos dávamos conta, mas não era difícil de reparar no Capuchinho Vermelho e nos dois Moicanos, um ruivo e um moreno. Segunda regra de Vilar de Mouros: não há mosquitos em lado nenhum! Há Vampiros, e aos milhares! Quando se chega à vila começa-se a constatar que se é atacado a cada dois segundos por uma espécie baptizada prontamente de Mosquito Cão, porque morde e não larga. Quem inventou a anedota "Qual é a diferença entre uma loira e um mosquito", não esteve em Vilar de Mouros, porque quando se bate nestes mosquitos eles continuam a chupar como as loiras da anedota. Aliás a organização, para o próximo ano,  vai substituir as pulseiras amarelas e vermelhas porque as mordidelas que toda a gente tinha dava para ver quem estava no festival!

sábado, 17 de julho de 2004

Os Pseudo-Forinhas

-Continuação-
Pior que os Forinhas só os Pseudo-Forinhas!
Os Pseudo-Forinhas... coitados, sem imaginação para mais, são o chocolate Avianense em comparação com o verdadeiro e único chocolate, o Toblerone, são o sucedâneo dos Forinhas. Optaram por copiar os Forinhas mas de uma forma que os torna um pouco tristes. TRISTES sim, são uns tristes. Tiraram a beleza toda aos Forinhas. Os PF’s são os meninos bem que resolveram enfrentar os paizinhos e então decidiram ser rebeldes. Fazem quase tudo que os Forinhas fazem, mas não colam cartazes, tomam banho, têm namoradas carneiras, são incapazes de dormir na rua, e têm a puta da mania que são rebeldes, como se nunca puseram sebo no cabelo? Se nunca viram um piercing infectado; se nunca mijaram nos pés para os aquecer no inverno?
Estes moços e moças gostam das mesmas coisas menos dos sacrifícios, que são poucos. Se eu fosse Forinha e conhecesse algum destes PF’s tirava-lhe o cartão de sócio!!! Imitadores baratos é o que é!!! Aliás caros, já que as ropitas que usam são de boas lojas sendo imitações dos grandes ícones e vagas culturais anarco-rebelde-estoucontratudooqueseconhece. Perceberam.aliás o estoucontratudooqueconheço, vai ao cúmulo de nos casos mais graves de PF’s de se tornar num estoucontratudooqueconheçoatécontramimpróprio. São estúpidos, mas faz parte.

sexta-feira, 16 de julho de 2004

Os Forinhas

Voltámos à onda das críticas, sociais ou não, o que interessa é que transmitam algo de útil. Estava eu a beber as minhas cervejas de sábado à noite quando de repente surge à conversa um tema de que me orgulho de ter uma opinião muito crítica e por vezes muito cáustica. Os Forinhas.
O que são Forinhas, ainda me perguntava eu há poucos meses, já que todos os dias se criam novas terminologias, transformando palavras que deviam ser vulgarmente usadas, em palavras vulgares desprovidas de uso, porque é mais fahion dizer Forinhas em detrimento de deslocados. No fundo é o mesmo mas com muito mais estilo.
A juventude de hoje cria uma série de novas palavras, ou melhor, reinventa-as para fazer frente ao poder instituído. O que dizer do principal ninho de Forinhas do mundo, o Bloco de Esquerda. Aliás estou a meter os pés pelas mãos, porque os bloquistas não são Forinhas, são Pseudo-Forinhas, já que os Forinhas ingressam e engrossam, não muito, as fileiras do Partido Comunista Português.
Mas isto não é um artigo sobre política, nem é minha intenção dar-vos uma grande seca. Eu passo a explicar o que tentou a tentar dizer/escrever.
A sociedade é limitada e delimitada pelo conjunto social de pessoas que tem gostos, ideias, convenções e conveniências muito similares, bem como conceitos morais e hermenêuticos que não tem disparidades muito visíveis, comportando no seu tecido a noção de normalidade. Em suma é um bando de carneiros que come erva do mesmo prado, bebe no mesmo lago, caga no mesmo canto e é comido, depois de muito bem temperado, senão é um cheiro que não se aguenta, da mesma forma que os seus correligionários amigos, colegas, companheiros, palhaços, carneiros!
Estas pessoas ditas normais, que a partir de agora passamos a designar por Carneiros, tendem como todo o ser humano a etiquetar as pessoas que estão à sua volta com um título, que faz a clivagem cultural, social, you name it, de modo a poder haver diferenças. Agora é que vem os Forinhas.
O que são então os Forinhas? São todos aqueles deslocados que não se enquadram no tecido social normalmente aceite pela maioria. Ou seja são todos aqueles que não gostam de comer tomates de carneiro e não aguentam o cheiro a burro morto que a carne de carneiro exala antes e depois de morto.
Temos então o redil dos carneiros, vulgo sociedade, e fora do limite da linha que delimita o redil, denominada de linha de Fora, estão... os Forinhas. Percebem agora? Vestem de forma diferente, com roupas herdadas dos punk’s, skinheads, hippies, usam todo e qualquer item que seja minimamente étnico, põem dentro da misturadora, com umas rastas no cabelo com sebo quanto baste, uns piercings e voilá o Forinha. Filiam-se prioritariamente no PCP. Depois dá-lhes uma aragem e mudam para o Bloco, mas já lá vamos. Metem-se nas associações de estudantes, nos movimentos anti-praxe, na Greenpeace, no Movimento de Protecção das Cadelas que Têm Cio Seis Meses Ininterruptamente e Ninguém Lhes Liga Puto, etc. Frequentam bares que tem sempre uma instalação, uma exposição, uma performance, qualquer coisa, mesmo que seja atirar latas de sardinha vazias do quarto andar para a rua, desde que seja arte... têm namorados/as do mesmo anti-grupo social, geralmente nem carneiros de signo querem conhecer. Em resumo, são os idealistas que enchem as ruas de murais contestatários, que fazem manifestações antiglobalização, anti-guerra, anti-estáticas, que mandam email's a avisar que a coca-cola é um veneno, que compram a revista cânhamo, que se recusam a comer no MacDonald’s e todo e qualquer um deles enfiaria uma pinha em brasa no cu do Bush pelas merdas que tem andado a fazer.

-CONTINUA-

terça-feira, 13 de julho de 2004

Raiva

Encontrava-se confuso como nunca se encontrara até ao momento. A sua cabeça volteava em turbilhão, dirigindo-se lentamente em espirais finitas para um ponto com um fundo bem definido. Mancava de um olho enquanto fixava o futuro incerto e conhecido de antemão. Era o ponto final e de partida porque tanto ansiava. Lentamente sentia os frios dedos do destino a fixar-se na sua garganta. Riu-se temerariamente não sentindo ainda os seus efeitos.
Calculou com parcimónia todas as jogadas que ainda lhe restavam. Autobiograficamente olhou para o punhal que se lhe enterrava lentamente nas costas e reconheceu o executante com a precisão milimétrica de quem fazia um desenho técnico. Gargalhou na sua direcção e sentiu-se mais calmo. A veia que se lhe dilatava no crânio acalmou e o sentimento de vingança encheu-lhe todos os sentidos mesuráveis.
Enquanto escrevia toda a raiva se esvaziava e com determinação tomava decisões que lhe iam mudar a vida de qualquer forma. É impressionante como num momento de estagnação a tentativa de espezinhar alguém desperta nela todo que de bom e mau existe e a faz evoluir. A traição funciona como motivação.
Recolheu-se num casulo a aperfeiçoar todas as suas capacidades, habilidades, capacidades, para se tornar na borboleta venenosa que desferiria o golpe final. Rilhou os dentes lentamente e sentiu o marfim a ceder. Estalou os dedos e pensou nas capacidades que teria para executar tão agridoce tarefa.
Tantos anos de assassino profissional não lhe deram, ainda, o treino suficiente para poder encarar desafios pessoais. Tentou escrever, mas as gralhas eram constantes. Os dedos atropelavam-se nas teclas, como se a guerra de letras se tratasse de uma sopa, com as vogais a rir das consoantes.
Abriu a porta da sua vivenda Art Nova, decorada com portentosos azulejos, decorados com cornucópias floridas de amarelo arabizadas de azul vinoso e guiado pelo pensamento de todas as afrontas e atropelos cometidos por aquele que considerava seu amigo, agora inimigo pseudo-declarado deixou-se conduzir ao ambiente da futura felicidade e calma desfigurada pelo destino atroz desenhado a terracota por um dedo desse Judas ainda não queimado. Mas prestes a sê-lo.
Encontrou a porta fechada e chorou, chorou lágrimas ácidas que derreteram o puxador, chutou a porta e entrou de rompante no corredor como um vendaval interior. Procurou o objectivo e com raiva encontrou-o estrangulou-o crispando os dedos depois de ter lido Valquíria estou no cemitério. Adiado! Adiado, mais uma vez adiados o tormento e o prazer.
Freneticamente andou, correu, passeou e entrou no cemitério de Agramonte. Deixou-se envolver pelo silêncio, pelo chilrear dos pardais, e com toda a calma deste mundo congelou a envolvência até à vigésima quinta secção. Estacou ao vislumbre. Lá estava ele semi-encoberto por uma japoneira. Orava com a sua hipocrisia a alguém que lhe era completamente indiferente. O busto revelava uma senhora morta dois anos antes, vestida com uma capa negra de estudante. O negro da capa contrastava com o branco do mármore. O olhar vazio pressentia a tragédia que se seguiria. As flores caídas com a providencial ajuda do Outono pejavam o chão de rosa e o seu olhar tingiu-se de vermelho...
Aproximou-se e disparou. Disparou todas as palavras de repreensão e recriminação que estavam contidas pela raiva contida até ao momento. Vomitou todas as emoções com uma dor de estômago infernal que lhe moeu o íntimo da consciência e do raciocínio. Espalhou os sonhos do traidor pelo chão e nunca mais foi feliz com a vingança.

O Papel

Estava sentado na sua costumeira esplanada, a saborear o café. Eram quatro da tarde e àquela hora os transeuntes eram muitos. Sentava-se ali cerca de meia hora por dia, a bisbilhotar discretamente os afazeres das outras pessoas.
Lembrava-se sempre daquela senhora, que morava numa rua estreitinha, na sua já há muito esquecida freguesia, perdida nos confins da serra Amarela, que parcimoniosamente observava as andanças das outras pessoas, e entre um dedo e outro de prosa, recolhia todos os boatos que se transformavam em notícias e todas as notícias que se transformavam em boatos, tal era a habilidade da senhora para deturpar as coisas. Não se lembrava do seu nome, mas na aldeia chamavam-lhe a Emissora Nacional. Não tinha muito crédito na praça mas havia uma notícia ou outra que lá acabava por passar para bocas mais limpas.
Não era propriamente a afinidade com a conterrânea que o fazia estar ali sentado quase todos os dias. Gostava de observar as pessoas e imaginar para onde iriam, o que faziam ali, ler-lhes na cara as emoções para inventar personagens que pudessem encher páginas escritas de histórias fantásticas.
Pousou a chávena e abriu o livro que estava na cadeira ao lado. “Baudolino” de Umberto Eco. Curiosa personagem esta que mentia compulsivamente e se achava o criador de inúmeros acontecimentos do século XII. Quantos Baudolinos não nos passaram já pela frente e continuam a passar? A Emissora Nacional, lá na sua terra era um.
Deixou os pensamentos para trás já que, entretanto pelo canto do olho, reparou numa criatura atípica no seio daquela mole de pessoas que se comportavam todas da mesma forma. Um sem abrigo, com a perna esquerda amputada pelo joelho e pela vida, aproximou-se e por cima do ombro tentou discernir o que ele estava a ler. O Leitor ignorou a respiração etílica que sobre si caía e continuou a ler, só acordando quando o Amputado lhe perguntou:
- Então o que está a achar desse livro?
- Não é o melhor livro deste autor, mas também não é o pior, gaguejou, espantado com a questão.
Estava à espera de tudo menos daquilo, mas quem diz que os sem abrigo são incultos? Não é uma verdade absoluta, mas a sociedade torna-a quase um dogma, um mundo de aparências é o que é. Foi interrompido novamente.
- Quando não tinha ainda desgraçado a minha vida costumava ler muito, mas agora já não o posso fazer, disse com tristeza. Agora, vou lendo uns jornais que apanho no lixo, ou com muita sorte, vou encontrando uns livros abandonados. É a vida.
- Pois é, mas olhe, não se quer sentar aqui cinco minutos a tomar qualquer coisa que eu venho já? Peça o que quiser que eu falo com o senhor do café.
Entrou informou o senhor do café que servisse o seu convidado, e três lanches mistos, uma fatia de bola e uma cerveja depois, voltava ofegante. Pousou dois livros iguais na mesa e ofereceu um deles ao senhor que se desfez em lágrimas. Ele evitou os agradecimentos, e pacientemente ouviu a história que ele tinha para lhe contar. Cinco minutos depois pelo meio de uma chuva de agradecimentos, pediu desculpa e educadamente continuou a sua jornada para fazer dinheiro, quanto mais não fosse para o almoço do dia seguinte, porque para o jantar já ia bem servido. Levava no bolso alguns pastéis e sandes.
Entretanto na mesa ao lado a cena toda tinha sido seguida com atenção. Uma morena de cabelo castanho liso, por cima das lentes dos óculos de sol, ia tirando as medidas e estudando todo o envolvimento em volta daquela personagem. Brincava com o cigarro que tinha na mão e ia tirando fumaças de fumo azulado de cada vez que tirava uma passa. Pensativa olhou em volta e vendo que não era alvo de atenção, pensou que se lixe e escreveu qualquer coisa num papel.
Um cigarro depois o Benemérito levantou-se e ela ficou com a adrenalina aos saltos. Quando reparou que ele se dirigia à casa de banho, levantou-se e rapidamente colocou a marcar o livro o Papel, não sem antes ter levado com um sorriso de um casal de namorados que entretanto tinha reparado nas suas movimentações.
Setenta e três pessoas que passavam na rua (entre as quais dois polícias em ronda, dois cães pegados por um osso e três betas de argolas vestidas exactamente da mesma forma) depois, lá voltou ele. Mais aliviado, ao que parecia.
Ele aliviado e ela nervosa. Ele abriu o livro e ficou espantado, estranho café onde acontecem coisas tão sui generis, pensou. Ela com o coração a saltar-lhe pela boca, ele com a testa enrugada a olhar em volta. Mas o que é que tem o raio do papel escrito? Eu sou o narrador desta história, acho que tenho o direito de saber! Ou não? Estás a ler um livro interessante, gostei muito, se bem que ás vezes o autor cansa. Sabias que és muito giro? Desculpa o atrevimento mas gostava de te conhecer melhor.
Olhou em volta e tentou ver quem teria sido a autora da façanha. Olhou para o lado e viu um casal de namorados que olhavam para ele com cara de caso sorrindo. Na outra mesa estava uma rapariga morena de cabelos castanhos escuros lisos, de óculos de sol, que tanto quanto lhe parecia estava compenetrada num ponto no infinito. As outras mesas estavam vazias, mas tanto quanto lhe cabia saber até poderia ter sido alguém que passara na rua, até a empregada do café. E se Ela o queria conhecer como é que ele poderia dizer que sim?
Pediu um Jack Daniels, e pediu-lhe conselhos. O sorriso maroto de miúdo que está prestes a fazer asneiras, e que tão bem o caracterizava, iluminou-lhe o rosto. Entrou no café, e dois minutos depois saiu triunfante. Três voos rasantes de pombos (sobre a cabeça dos transeuntes) depois, uma garrafa de água com gás num pires, com um malmequer e um papel com “tira os óculos de sol e podes conhecer-me” escrito, chega à mesa da vizinha. A surpresa estampou-se na cara da jovem e ele teve a certeza.
Ela tirou os óculos, ele levantou-se, sentou-se na mesa dela. O casal de namorados na mesa ao lado, foi ao balcão ao pagou a despesa das três mesas. Um cigano que ia a passar tropeçou, por ir a discutir com a mulher, e partiu os dois dentes de ouro quando bateu no balde do lixo que rolou para o meio da estrada e fez com que um carro batesse num boca de incêndio, enchendo a boca de cena de água, mas nem o Leitor nem a Escritora se mexeram. Já estavam a ter uma de muitas conversas que os iria ligar um ao outro para sempre.