sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias XV

Segui-a sem comprar um livro que fosse e observei com interesse as suas linhas, enquanto íamos falando de livros. Se tivesse uma armadura e um cavalo era uma Valquíria e sem dúvida que montaria como uma. Comecei a imaginar mil e uma coisas até que chegámos a sua casa.

Uma vivenda típica daquela zona com grades de ferro forjado dos finais do século XIX a proteger as janelas, azulejos art deco, uma porta única de entrada com um vitral fabuloso na bandeira, que mostrava uma cena de batalha entre harpias e homens. Sugestivo…

Levou-me para o seu quarto e pediu-me para esperar. A janela, ampla dava para as traseiras onde se via um jardim de buxo com aqueles desenhos espiralados típicos que só se conseguem fazer com este tipo de sebe, aliás quem viu um viu todos. Na parede do lado direito uma grande estante de mogno castanho mimetizava tomos castanhos de variadíssimos autores.

Comecei a percorre com o olhar os títulos, para perceber qual seria o Arché da rapariga. Tulcídides, Júlio César, S. Tomás de Aquino, S. Bento, Dante Aghlieri, Petrarca, Dumas, Salgari, Eça… e tantos mais que fiquei boquiaberto. Folheei os mais sonantes e vi uma série de anotações em vários tipos de caligrafia e descobri que pelo menos três pessoas haviam lido a maior parte dos livros. Pela data cheguei à conclusão que a minha recém desconhecida amiga tomava o nome de Jocasta. Nem de propósito caros amigos.

“Estou a ver que já descobriste a surpresa… mas vamos ver de que surpresa gostas mais”. Estava de roupão e com o cabelo preto preso à amazona. Aproximou-se e beijou-me e o meu corpo todo respondeu àquele toque. Começamos a tirar a roupa e com olhos delirantes descobri que ela cobrira todo o corpo com uma camada de latéx que a tornava ainda mais sensual do que já me parecia.

Ao passar as mãos pelo seu corpo descobri algo estranho, que não tinha o seio esquerdo como as amazonas que o cortavam para melhor poder atirar com o arco. Fiquei doido e tive a melhor tarde e noite e tarde e noite outra vez que já tive na minha vida. De vez em quando nos momentos de descanso a minha Valquíria dizia-me ao ouvido “Tu és o homem mais sábio que conheço em todos os campos” ao que eu lhe respondia “Enganaste-me bem com aquela conversa dos livros, e eu a pensar que te estava a ensinar alguma coisa…”.

Não quis saber porque não tinha seio, resolvi arquivar isso na minha mente como uma coincidência para fortalecer a minha fantasia Wagneriana.

“Como sempre excedeste-te! Não sabes escrever pouco? É sempre a mesma merda, preocupas-te demais com os pormenores e com os preliminares.”

“Deixa estar, se assim não fosse não era ele. É a puta da mania de que escreve numa revista, mas bem vistas as coisas só lhe fica bem.”

Tântalo saiu como era costume em defesa do ataque de Minotauro que tinha que meter a sua colherada crítica.

“Gostei muito daquele trocadilho entre o Cérbero e o cérebro. Achei de uma qualidade a toda a prova. Como raio é que te foste lembrar disso?”

“Pois é, isto não é para todos, isto de ser bom tem que se lhe diga!”

Liga das Quecas Extraordinárias XIV

“Estou a ver que tem também uma visão muito crítica das leituras que faz. Gosto de homens assim, críticos e com ideias próprias. Pensei que tinha lido muito, mas pela amostra, estou a ver que ao meu lado você é a biblioteca de Alexandria e eu uma simples alfarrabista de rua” é escusado dizer que me babei por dentro, afinal que melhor elogio podia ter do que um à minha cultura “mas diga-me, gostava de ler um livro de fantasia relativo à mitologia nórdica, o que me aconselha?” senti-me poderoso, como é óbvio. O meu cavalo de Tróia entrara em grande estilo dentro da sua cidade e os meus soldados estavam já com o nervoso miudinho para fazer o saque.

“Sobre mitologia nórdica, confesso que não lhe posso indicar nada de especial” disse com humildade disfarçada, para não parecer muito seguro de mim e não afastar a caça “mas em contrapartida posso-lhe dizer que um senhor chamado John Ronald Reuel Tolkien escreveu uma série de livros inspirados nessa Mitologia.

“O Hobbit”, “O Senhor dos Anéis”, um livro só e não três livros como muitos pensam, ou o “Silmarillion”, a bíblia que explica o Génesis de um fantástico mundo, criado de raiz, com língua, mitos e geografia próprios, tudo inventado a partir dessa interessante história sobre-humana que é o panteão de Odin e seus congéneres. Tolkien leu na língua original as sagas nórdicas e a partir daí criou uma alegoria do mundo industrializado contra a tradição, apoiado nas suas vivências nas trincheiras da primeira guerra mundial.

É interessante lê-lo à luz desses acontecimentos e tentar ver os paralelismos que existem. Dá também um alento para ler as mitologias nórdicas e ver o que é original, adaptado ou criado.”“Já deu para perceber que percebes muito de literatura e não és um leitor muito comum para a tua idade. Desculpa estar a tratar-te por tu mas temos os dois a mesma idade, mais coisa menos coisa. Não queres dar um salto até minha casa, tenho lá algo que vais gostar de ver.” Não me perguntou, ordenou.

terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Liga das Quecas Extraordinárias XIII

“Como começar caros colegas? Reportar-me-ei aos acontecimentos do dia 22 de Outubro deste ano insuspeito.

Nesse dia saíra como já era costume para fazer a minha actualização mensal na biblioteca municipal e nas minhas livrarias de eleição. Na biblioteca fiz a resenha das novas publicações e nas livrarias fiz a recolha das publicações dos livros que iria ler nos próximos trinta dias.

Às vezes não é fácil escolher o que ler, principalmente quando a oferta é tanta. “Memorias de mis putas tristes”, “O velho e o mar”, “O Pêndulo de Foucault”, “Juliano”, “Os jardins de Luz”, “o Conde de Monte Cristo”, “A Voz dos Deuses”… cada um ao seu estilo chamava por mim e tornava cada vez mais difícil a decisão do que levar.

Ao meu lado uma rapariga de cabelos negros olhava de soslaio para a minha indecisão. Continuei a ler as anotações na contracapa dos volumes para ter alguma ajuda até que a rapariga, como a revelação da pitonisa de Delfos, me esclareceu.

“Umberto Eco é um óptimo autor, se bem que de vez em quando se torna muito denso.” Falava tão rápido que a frase lhe soou a “UmbertoEcoéumóptimoautorsebemquedevezemquandosetornamuitodenso".
“Desculpe menina, mas está a falar deste livro em particular ou dos outros títulos que existem na sua extensa bibliografia?”

“Estava-me a lembrar especificamente de um… “A ilha do dia antes.” Pensei que seria um teste à minha cultura e como sabem que não gosto de me ficar quando o tema é a minha cultura literária, senti aquilo como um desafio e resolvi entrar no jogo.

“Se acha que esse livro é denso é porque ainda não passou os olhos por este. Estava a pensar comprá-lo para o reler.
A primeira vez que passei os olhos por ele foi quando tinha dezasseis anos e confesso que muita coisa me passou ao lado, mas ao mesmo tempo atraiu-me para tudo que tivesse a ver com este autor. Este sim, é na realidade denso. Começa pela temática, que misturando Templários, Rosa-cruzes, sinarquias, satanismo e afins a torna numa obra per si densa e hermética. A forma como Eco brinca com a escrita e com as personagens e como introduz informação de várias áreas que vai cruzando, ainda complica mais a leitura e não há dúvida que o faz de forma magistral.”

“Muito bem… já me deixou com vontade de pegar nele e começar a ler. Li o nome da Rosa e a impressão que fiquei depois de ter lido a ilha foi que ele adensa muito a escrita por isso é que nunca mais peguei… num livro seu.

Mas tem aí um dos meus autores favoritos. Já leu “A Criação”?” Mais um teste. Estava mesmo tentado a dar-lhe uma lição de literatura. Senti-me como Édipo em frente à esfinge, com todas aquelas questões, mas isso excitava-me. O Cérbero é o maior dos órgãos sexuais e mulheres deste tipo despertam-me o desejo.

“Gostei, muito embora é uma perspectiva demasiado americanizada da cultura europeia. Gore Vidal é um bom crítico se bem que de vez em quando exagere. Não há dúvida que minimiza a cultura grega em relação às culturas do Médio e Extremo Oriente suas contemporâneas, como calara intenção de dizer que os europeus estariam mais bem servidos se estudassem melhor as filosofias orientais.Não discordo que a cultura de história europeia não dá atenção nenhuma a parte oriental da história universal, mas também não é assim tão grave para Vidal dizer que os gregos eram uma cambada de corruptos e homossexuais e que os orientalistas, esses sim eram porreiros. Há que haver um meio-termo.”