Há uns tempos atrás, eu e a Amie, combinámos que ela fazia um desenho e eu escrevia um conto com a mesma estrutura.
Com alguns itens como inspiração, metemos mãos à obra. O sítio devia ser um café como o Piolho e devia ter um casal que lia, cada um o seu livro.
Sentei-me no Piolho, imaginei e ela também.
A ergonomia das cadeiras agrada-me. A cor entra-me pelos olhos e reflecte o material de que são feitas; castanho. Nenhuma é igual a outra, todas diferentes com curvas diferentes, como mulheres: função igual aspecto discrepante. Acho-as sensuais.
Peço mais um príncipe enquanto vou estudando as cadeiras…
À minha esquerda um casal comporta-se de uma forma que me cativa os sentidos. São intemporais, não consigo colar nenhuma identidade, credo, idade, estatuto social. Podiam estar sentados aqui há sessenta anos como estão neste preciso momento.
Estão a ler: frios, estáticos, concentrados. Estudo-lhes o olhar.
Ele segura o livro com uma mão; o polegar, grande, divide a lombada e possibilita a leitura. Na outra mão uma Montblanc azul-cobalto que usa de vez em quando para sublinhar ou tirar notas.
Quer um quer outro não me deixam adivinhar a capa dos livros, fica à guarda da minha imaginação.
Ela lê muito rápido, tal é a velocidade com que vira as páginas, que me faz concluir que lê na diagonal ou que os caracteres são grandes o suficiente para ler com celeridade. Agarra o livro, com firmeza usando as duas mãos, com medo que lhe escape das mãos e não venha a saber o fim da história.
Pelo aspecto dele julgo que será um leitor de temas pesados crípticos. As notas que tira deixam adivinhar alguém que gosta de ler para saber o que está por detrás da intenção primária do autor. Organiza ideias através das notas e tenta fazer melhor: é um aplicado. Desenganem-se pela encadernação o livro não é nenhuma tese, é literatura, de certeza (pelo menos quero crer).
Ao anotar está a evoluir no conhecimento. Vejo leituras consecutivas, repetidas do mesmo parágrafo, da mesma linha a destrinçar tudo.
Ela desconcerta o meu pensamento; para mim é mais fácil ler a mente masculina. Há leituras que são estatisticamente masculinas, femininas e as excepções. Os homens gostam de acção; as mulheres de coisas mais emotivas; as excepções… enfim não sei.
Lê um livro com muito conteúdo emocional. Nota-se no seu semblante à medida que vai evoluindo na leitura. A emoção é rápida entre sorrisos lamechas e olhos brilhantes maquilhados por cloreto de sódio. Leituras porventura fáceis para qualquer leitor mas carregadas de emoções que beliscam o músculo cardíaco.
O empregado interrompe a minha observação. O casal fala entre si e fico maravilhado: com linguagem gestual comunicam entre si e com os outros.
Trocam um sorriso. Ele levanta-se, puxa-lhe a cadeira, veste-lhe o casaco e dá-lhe um beijo puro, simples na boca. Uma lágrima corre-me pela face e mancha-me o papel.
Saem.
Imagino: dois mudos que se refugiam na literatura; lêem coisas diferentes e compreendem-se de uma forma genuína.
Em casa tem milhares de livros arrumados em centenas de estantes e devoram-nos, ele mais lento que ela. Cada um tem um escritório com as estantes, as prateleiras, os livros a alma de cada um.
Acredito, por vezes, as pessoas são aquilo que lêem. Entro na casa de alguém e surpreendo-me a observar os livros; dizem muito de uma pessoa.
Para mim, este casal transformou-se na imagem dos próprios livros, ou antes, os livros é que são a imagem deles.
Consigo imaginar um livro que seja a cara de cada um deles, mas isso…