quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

Livros

desenho2
Desenho da Amie

Há uns tempos atrás, eu e a Amie, combinámos que ela fazia um desenho e eu escrevia um conto com a mesma estrutura.

Com alguns itens como inspiração, metemos mãos à obra. O sítio devia ser um café como o Piolho e devia ter um casal que lia, cada um o seu livro.

Sentei-me no Piolho, imaginei e ela também.

A ergonomia das cadeiras agrada-me. A cor entra-me pelos olhos e reflecte o material de que são feitas; castanho. Nenhuma é igual a outra, todas diferentes com curvas diferentes, como mulheres: função igual aspecto discrepante. Acho-as sensuais.

Peço mais um príncipe enquanto vou estudando as cadeiras…

À minha esquerda um casal comporta-se de uma forma que me cativa os sentidos. São intemporais, não consigo colar nenhuma identidade, credo, idade, estatuto social. Podiam estar sentados aqui há sessenta anos como estão neste preciso momento.

Estão a ler: frios, estáticos, concentrados. Estudo-lhes o olhar.

Ele segura o livro com uma mão; o polegar, grande, divide a lombada e possibilita a leitura. Na outra mão uma Montblanc azul-cobalto que usa de vez em quando para sublinhar ou tirar notas.

Quer um quer outro não me deixam adivinhar a capa dos livros, fica à guarda da minha imaginação.

Ela lê muito rápido, tal é a velocidade com que vira as páginas, que me faz concluir que lê na diagonal ou que os caracteres são grandes o suficiente para ler com celeridade. Agarra o livro, com firmeza usando as duas mãos, com medo que lhe escape das mãos e não venha a saber o fim da história.

Pelo aspecto dele julgo que será um leitor de temas pesados crípticos. As notas que tira deixam adivinhar alguém que gosta de ler para saber o que está por detrás da intenção primária do autor. Organiza ideias através das notas e tenta fazer melhor: é um aplicado. Desenganem-se pela encadernação o livro não é nenhuma tese, é literatura, de certeza (pelo menos quero crer).

Ao anotar está a evoluir no conhecimento. Vejo leituras consecutivas, repetidas do mesmo parágrafo, da mesma linha a destrinçar tudo.

Ela desconcerta o meu pensamento; para mim é mais fácil ler a mente masculina. Há leituras que são estatisticamente masculinas, femininas e as excepções. Os homens gostam de acção; as mulheres de coisas mais emotivas; as excepções… enfim não sei.

Lê um livro com muito conteúdo emocional. Nota-se no seu semblante à medida que vai evoluindo na leitura. A emoção é rápida entre sorrisos lamechas e olhos brilhantes maquilhados por cloreto de sódio. Leituras porventura fáceis para qualquer leitor mas carregadas de emoções que beliscam o músculo cardíaco.

O empregado interrompe a minha observação. O casal fala entre si e fico maravilhado: com linguagem gestual comunicam entre si e com os outros.

Trocam um sorriso. Ele levanta-se, puxa-lhe a cadeira, veste-lhe o casaco e dá-lhe um beijo puro, simples na boca. Uma lágrima corre-me pela face e mancha-me o papel.

Saem.

Imagino: dois mudos que se refugiam na literatura; lêem coisas diferentes e compreendem-se de uma forma genuína.

Em casa tem milhares de livros arrumados em centenas de estantes e devoram-nos, ele mais lento que ela. Cada um tem um escritório com as estantes, as prateleiras, os livros a alma de cada um.

Acredito, por vezes, as pessoas são aquilo que lêem. Entro na casa de alguém e surpreendo-me a observar os livros; dizem muito de uma pessoa.

Para mim, este casal transformou-se na imagem dos próprios livros, ou antes, os livros é que são a imagem deles.

Consigo imaginar um livro que seja a cara de cada um deles, mas isso…

sábado, 24 de dezembro de 2005

Bom Natal e Tal


Meus amigos...

É para vos lembrar que no dia 25 de Dezembro se celebra o aniversário de Júlio César (acho que é mentira)!

O Natal celebra-se para celebrar o solstício de Inverno, o resto são histórias mal contadas.

Cristo nasceu em Março!

Até para a semana!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Portugal em Coma Profundo #1


"Os bêbados ou festejando o S. Martinho"
José Malhoa - 1907

Não pretendo nem quero ser, algum dia, o dono da verdade, muito embora dê algum jeito ser possuidor de alguma. O que vão poder testemunhar nos textos PCP (Portugal em Coma Profundo) será a minha visão crítica e equidistante do nosso país ligado às máquinas, agarrado ao cabide do soro e à espera de electro-choques para acordar do marasmo.

#1 O café (vulgo tasco)

Acho que todos, uns mais outros menos, já entraram num café de aldeia ou mesmo de vila. Bem esmiuçada a metrópole, também se encontra o café de que vos vou falar.

É gerido por uma família, com pelo menos 4 gerações presentes. O Avô que já se deixou de se chatear com o trabalho, passa o dia sentado na Sua mesa a falar com este e aquele; os pais servem ao balcão e dão galhetas nos filhos que também já dão os primeiros passos ao fim de semana, os netos lá andam em correria desvairada a azucrinar o juízo aos clientes (que vão aproveitando e ensinando as primeiras malandrices).

As mulheres do clã estão, como não podia deixar de ser, na cozinha a preparar moelas, rojões, tripas, que colam aquele cheiro gorduroso na roupa e no cabelo da clientela.

Se algum elemento se casa, o cônjuge é sempre bem-vindo para trabalhar no café.

Café que se preze, tem algumas coisas de que se orgulha: o balcão de alumínio, que por muito que se limpe, e seja naturalmente asséptico, está sempre, algo, sujo; a máquina do café, já antiga (anos 30), que não pode ser lavada senão perde-se o gosto do café; as mesas e cadeiras a imitar o mármore, que tão bem combinam com o balcão; uma televisão de dimensões generosas para ver o futebol; e como não podia deixar de ser, um ou dois bêbados que constantemente cravam um copo a este e àquele.

E as cartas? Sueca, Sobe e Desce, Lerpa, Escova, Truco… E as damas, o dominó! Alguns cafés têm uma sala só para os jogos, outros fazem-no na sala principal, mas é certo e garantido nunca faltar parceiros para as cartas. Por vezes é mais religioso que o futebol.

Raro, raro é ver uma mulher entrar nestes locais, se bem que há algumas que vão buscar os maridos pelas orelhas (há casos disso). Evitam entrar, porque à partida serão comentadas desde a bainha das calças ao último folículo capilar, e isto com sorte. Alguém mais atrevido (acompanhado de um copo a mais) pode mandar a boquinha da reacção, capaz de fazer corar a meretriz mais qualificada da Trindade.

Não quero insinuar que o meu café é um antro de machistas… Prefiro qualificá-lo como um local onde os machos entram sempre em competição. Qual faz o melhor comentário, quem bebe mais cervejas, quem comeu mais gajas, quem pega em mais sacos de cimento…

Atenção que é frequentado por toda a gente, desde que seja do sexo masculino. Os mais educados (academicamente) são tratados por doutores ou engenheiros (mesmo que não o sejam) e o proletariado tem orgulho em ter ali tão importantes personagens.

Mas as coisas já não são como antigamente, este mundo está perdido. Entrei no café da terra há uns dias e, numa das televisões estava a dar o Chelsea, enquanto no ecrã gigante a telenovela, e os machos, confessos, todos a babar com aquilo.

Em conversas, a que já assisti várias vezes, discute-se a vida de fulano e cicrana (tudo se sabe) e ainda se advogam ao direito de criticar as cabaneiras, beatas, que vão para a porta da igreja falar da vida dos outros.

Será que o café está a entrar em vias de extinção!?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

Sal e Pimenta

Não resisti! Tinha que pôr este quadro!
- És sempre assim tão resmungão?!
- Não, só quando estou bem disposto, fora esses raros momentos sou calado.

Meio-dia e o Sol teima em não aparecer. Estás mal disposto e há já três horas que grunhes, só grunhes.
Batem à porta e começas a arrepender-te de te teres mudado para a cidade. Abres de boxers com a bandeira a meia haste. A tua vizinha quer sal e pimenta, com um pijama tão decotado, que lhe consegues ver o umbigo. Pensas que ela quer festa mas faltam-te as grinaldas e os confetis.
- Susana, até te convidava para entrar mas o meu cão está um bocado nervoso, acho que é dos dentes.
- Mas agora tens um cão?
- Tenho e, coitado, sofre de bruxismo.
- Bruxismo?! Que é isso?
Um sorriso maroto desenha-se-lhe nos lábios.
- Quando está a dormir faz pressão com os dois maxilares e range os dentes. É uma chatice porque aquilo deve doer e ainda por cima eu não consigo dormir com a barulheira.
- Deve ser horrível.
- Pois deve, e também não ajuda muito o que lhe tenho andado a ler para adormecer. Acho que Schopenhauer é muito para ele, coitado.
- De que raça é?
- É um Castro Laboreiro.
- Se tivesses um schnauzer era capaz de resultar. Para um Castro Laboreiro, Miguel Torga é capaz de ser melhor…
Não achas que já está na altura de acabares esta conversa disparatada? Não queres nada com a moça, despacha-a.
- Pois, vou experimentar.
Infelizmente não tenho sal nem pimenta…
- Mas tens mortalhas? Estou mortinha por fumar um.
- Acho que se pode arranjar qualquer coisa.
Entras, mexes e remexes e apareces com as mortalhas e com a secreta esperança que ela não se ponha com ideias. Está à porta com o rabo espetado à procura de algo no átrio: as nádegas espreitam do pijama de Verão como um convite.
- Cá estão.
- Muito obrigado. Olha… Não queres vir até ali e fumamos um, que achas?
Olhas para o decote, pernas bem feitas, olhos de mel, nádegas frias e rijas (já sabes). Hesitas mas dizes:
- Susana… Acho que fica para a próxima, tenho que sair.
O desconsolo fica bem patente nos olhos dela.
- Está bem, mas é pena, é que a erva é mesmo boa.
Vira-te costas e tu fechas a porta. Encostas-te ainda hesitante. Ouves a voz dela na porta do 2º esquerdo.
- Boa tarde Zé. Não tens sal e pimenta que me emprestes?

domingo, 18 de dezembro de 2005

O beijo


"O Beijo" Gustave Klimt - 1907-08

- Isto não vai doer nada.

Não vai não, como se eu não soubesse já como são estas coisas.

- Descontrai e vais ver que daqui a pouco já tudo passou.

É mesmo isso.

- Não te vou mentir, dói sempre um bocadinho.

- Sim, eu entendo.

Olha, e se saísses de cima dos meus pés? Sabes que para espectro pesas muito; para além disso já tenho os pés transpirados.

Não vou pôr os travessões de fala porque esta é uma conversa entre o personagem e o seu anjo da guarda.

Sim, sim… e que esperas que eu faça. O meu lugar é aqui, aos teus pés. Mesmo que não acredites em mim (porque raio é que me ia calhar um agnóstico na rifa), vais ter que levar comigo.

Pois mas não estejas à espera que te vá passar a mão pelas penas. Que raio de anjo és tu que nem penas tens? Já não vos fazem como antigamente?!

Eu sou só o fruto da tua imaginação. Cada um de nós é feito à imagem do que vos passa pela cabeça.

E se fosses fazer algo de útil?! E se fosses ajudar quem realmente precisa?!

Ah! Já sei o que queres.


Segunda-feira; Porto; 19:37.

- Olá!

A voz doce corresponde aquilo que tinha imaginado. Bonita, bem feita e meiga, muito meiga; por trás da aparência adivinhava-se uma caixa de dinamite (vem sempre em pacotes pequenos).

- Era cego e agora vejo.

- Desculpa?

- É esta cena dos blind date’s…

Ela ri-se com os lábios perfeitos e rugas de expressão dignas de uma profissional. Ele sorri meio envergonhado e pensa que não há razão para icebergues entre eles, afinal já tinham selado o pacto com um abraço de boas vindas.

- Apeteceu-me.

A mão dela toca-lhe, primeiro a pele e depois o fundinho do coração que está pequeno, ou melhor, apertado de uma dor boa.

- Ainda bem que te apeteceu…

- E se fossemos jantar?

Duas horas depois, e com uma garrafa de tinto do Douro a acompanhá-los, saem do restaurante, já bem agarrados. A estranheza já havia desaparecido e sorriam como dois adolescentes. O frio e a chuva miúda provocavam o aconchegar dos dois corpos.

- Gosto de chuva.

- E se usasses os lábios para o que eles servem?

- Hmm…

Não foi coragem, foi empatia que precipitou o acontecimento. Ele agarra-a e rouba um beijo consentido.

- Estás-me a beijar?!

- Shiu…


Pronto eu vou lá. Se é o que queres…

É mesmo isso. Ajuda-a.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

Lector in studio III


"O copo de vinho" - Johannes Vermeer - 1658-61

Vem daqui

Numa das suas incursões, viu um grupo de peregrinos romando a uma capela das redondezas que tinha como orago S. Bartolomeu, resolveu segui-los. Esta capela ficava situada na bordejadura do mar e os romeiros, mais ou menos bem informados da topografia e geografia da zona, mais mal que bem como vamos constatar de seguida, sabiam que uma das premissas para obter os favores deste santo, de poderes difusos mas eficazes, era dar sete mergulhos nas ondas do mar.
Chegados a uma montanha semeada de batólitos graníticos, que não teria mais que 150 metros de altitude mas com um declive algo considerável, e vendo todo o espaço à sua frente semeado com bancos de nevoeiro, os caminhantes não tem mais nada e, um após outro, atiram-se de cabeça em direcção ao precipício, tendo como resultado cabeças rachadas, braços e pernas partidas e escoriações em várias partes do corpo somenos importantes para aqui estarem a ser descritas ao pormenor.
Não havia memória de caso tão insólito e no hospital, onde Orniciteplático nascera anos atrás, muito menos. Também, e a bem da verdade diga-se, nunca tinha havido registo de toda uma população adulta de uma aldeia estar internada no mesmo sítio pela mesma causa disparatada com consequências tão díspares.
Este episódio, para além de insólito aos olhos do pequeno explorador, foi acima de tudo incompreensível. Anos mais tarde o Gerador explicar-lhe-ia que as pessoas daquela freguesia cultivavam e bebiam um vinho que, se cria, provocava danos cerebrais irreversíveis.

Episódios destes interrompiam as suas explorações com uma frequência que não lhe fazia muita diferença, mas que a certa o altura o tornaram num viciado em histórias insólitas, que registava mentalmente no pequeno cérebro, com esperança que se não produzissem vinho num futuro próximo, pelo menos seriam passas.


quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

Lector in studio II


Sandokan - Capa de 1911

Vem daqui
Era sempre o último a ser escolhido nas equipas de futebol e nem se podia acudir de ser dono da bola, porque nunca tivera uma bola de capão a sério, o mais que tinha era a inteligência para jogos individuais.

Aprendeu a jogar xadrez, porque as damas eram um jogo por demais básico. A estratégia de gerir seis tipos de peças diferentes apelava a toda a sua inteligência, prática e teórica, fazendo-o sentir poderoso por usar o cérebro em detrimento das fibras musculares.

Anos mais tarde os musculados, brutamontes futeboleiros estariam “a dar massa” numa obra qualquer enquanto ele...

Foi neste preciso momento que o ostracismo grupal, dos seus colegas, o induziu a explorações a solo, não só dele próprio, como do espaço que o circundava. Em casa lia tudo o que lhe aparecia à frente, começando com os clássicos da BD, Cincos, Setes, Vernes, Salgaris, cobóiadas, policiais, Marias, Crónicas, TV Guias, Biancas, rótulos de detergentes, enfim tudo servia para aumentar o seu ecletismo intelectual.
Criou assim vários mundos paralelos, com todas aquelas personagens, situações, componentes químicos, lamechices, até com as fotografias do bébé do mês.
Fisicamente, saía de casa na sua bicicleta preta, de quadro à antiga, com travão traseiro accionado pelos pedais, com mudanças de punho como nas motas, e lá ia explorando os limites da sua reduzida geografia, aumentando-os a cada dia que passava.
Entrou em contacto, pela primeira vez, com a estupidez, simplicidade e ingenuidade humana, tanto quanto o seu verde intelecto estava preparado para suportar ou compreender.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

És Duende


Exploding Dog

Estou num barco que tem um buraco no fundo. A água entra às golfadas pelo orifício onde cabem dois dedos. Lembro-me de uma história que me contaram em Amsterdão há uns tempos atrás em que uma criança meteu o dedito num buraco, que havia num dique, e salvou a Holanda toda. Imagino a coitada da criança com uma sonda no braço de alimentação inter-venosa ainda com o dígito no buraco a salvar os Países Baixos.

Olho para o buraco e enfio lá o meu dedo com a esperança de evitar as cãibras. Um não chega, tem que ser dois. Tento em vão meter outro mas não consigo. Algo estranho se passa. Tento com a outra mão e o efeito é o mesmo.

- Ora porra, que se passa aqui?

Do tombadilho salta um pequeno duende verde que se ri sarcasticamente. Não como o do homem aranha, não como o dos contos nórdicos, não como os d’ O Senhor dos Anéis, mas um da minha imaginação: metade esquerda madeira, metade direita aço orgânico, orelhas bicudas e dentes podres. Abre a boca e o hálito podre faz-me lembrar um professor meu da faculdade.

- Era bom não era?

- Era bom o quê, pergunto eu com arrogância.

- Era bom que fosse assim tão simples. Não querias mais nada.

- Por acaso até queria, se tiveres aí uma cervejinha…

- Engraçadinho… o Sarcástico aqui sou eu, não queiras que os teus leitores pensem que és melhor do que eu. Afinal, se bem te lembras, escreveste ali em cima:

“Do tombadilho salta um pequeno duende verde que se ri sarcasticamente.” Se me pões a rir sarcasticamente é porque sou sarcástico.

- Mas também te esqueces que eu costumo matar as minhas personagens no fim!

- Pois, mas eu não sou uma personagem comum; tudo indica que se alguém vai morrer, esse alguém és tu! Ah ah ah ah ah ah!

- Não posso morrer! Estás-te a esquecer que já morri aqui há uns textos atrás.

- Não estou a ver…Eu fui criado agora por isso não sei o que tens escrito.

- Eu não tenho escrito nada. Eu sou um narrador novo, mas como um Narrador já foi morto nos textos anteriores e este escritor maluco não costuma repetir a dose, acho que desta vez és tu!

- Ei! O que é isto?! Revolução no meu texto?! Estejam lá caladinhos, quem manda sou eu. Não vou admitir tentativas de condicionamento nos meus textos!

- Olha quem ele é! Estás bom ó Terceleiros?


Exploding Dog

- Ainda bem que apareceste! Eu e a tua nova criação temos aqui um desaguisado e só tu é que podes resolver.

- Resolver? Achas que ele vai resolver alguma coisa?! Anda sempre a alardear o livre arbítrio das personagens e depois é o que se vê. Dá-lhes corpo (e já agora não gosto muito do meu, metade madeira metade aço?) e alma, confiança e depois manda-lhes a paulada!

- Mas o que é isto?! Não estás contente com o teu corpo? Olha que eu trato-te da saúde com uma figura de estilo! Queres um pleonasmo para ficares mais meiguinho?

- Está bem. Eu calo-me, mais vale isto que nada.

- Juizinho os dois e continuem lá a história. Senhor Narrador prossiga se faz favor.

Ainda bem que o Terceleiros apareceu. Não há paciência para estas criações de segunda água. E por falar em água já tenho os pés molhados.

Espera… Aqui na caixa dos comentários está a solução.

- Menina Ana, se li bem, ofereceu-se para meter o dedo no buraco.

O duende dá um grito lancinante e abana a cabeça em desespero.

- Que é que tu vais fazer?! Andei eu a engendrar este plano maléfico montes de tempo para isto? Para aparecer alguém na caixa dos comentários e estragar tudo?!

- Tu está mas é caladinho ó Mr. Spock mal acabado!

Ana entra a matar.

- Mr. Spock?! Olha que esta! Queres que te amaldiçoe até à quinta geração?!

- É porque vais amaldiçoar! Olha lá ó narrador, que é que se faz com esta prateleira do IKEA?!

- Eu não sei, mas estava a pensar que podíamos pensar em tapar o buraco, é que enquanto estamos aqui a discutir com o tarreco ainda vamos ao fundo.

- Então metemos lá o dedo ou nem por isso?!

- Metemos.

Colocámos os dedos no orifício, a água parou de entrar e como que por magia, a que estava no barco secou.

O duende faz cara de aborrecido e foi buscar um baralho de cartas e uma garrafa de Bollinger e atira-a a na minha direcção.

- Já que são tão amiguinhos arranjem-se. Ainda têm duas mãos.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Noir


"Girafa em chamas" - Salvador Dali 1936-37

A mesa de madeira geme com o copo de Jack Daniel’s. Aos poucos vou ficando embriagado mas não consigo reprimir a vontade de continuar: anestesiado nem vou sentir nada; a intenção até é essa.
Um par de olhos destaca-se do azul do saco-cama e repete a pergunta. Abano a caberça e digo que não. Algumas coisas começam a irritar-me: é esta postura de detective noir, os balões de pensamento a solidificar-se no fumo do meu cigarro, a reproduzir a voz-off do meu inconsciente. Sempre quis ser o Corto Maltese e acabo por ser um sucedâneo, sem piada, do Bruce Willis, no Modelo e Detective, sem modelo.
Toda esta história parece irreal, como que saída de uma noite de insónia. Ninguém, com todas as balas no tambor da sua calibre 35, está sentado num tasco de estrada, acompanhado por uma mulher vestida com um saco cama até aos ombros. Correcção, até ao ombro esquerdo; o direito está desnudo e prolonga-se até uns dedos brancos que seguram uma garrafa de água.
Sei que não tem mais nada vestido a não ser a pele e um pouco do meu suor. O meu pai sempre me disse “uma mulher vestida com o teu suor é bem pior que aquela que te oferece a aliança”. Nunca tinha percebido o que ele dizia, nem ia ser hoje, mas lembrei-me.
Não estamos sentados há muito tempo mas parece uma eternidade. O meu copo já criou uma espécie de receptáculo quadrangular, com a sua forma, o que me faz desconfiar da qualidade das mesas, não serão de madeira mas de gelatina.
O braço dela tem sinais aleatórios como uma constelação; pego na esferográfica e começo a ligá-los, fazendo um desenho do que me parece ser o futuro (não me agrada mas também nunca tive jeito para o grafismo). É abstracto mas significa algo.
Ela sabe, que no fundo sou uma alma errante, não o consigo esconder como já o fiz com tantas. Pela primeira vez sou sincero, sem merdas.
O fecho do saco cama abre-se um pouco e mostra aquilo que não quer esconder: uma porção do seio bem feito espreita em forma de convite. O desejo é bem maior que a insegurança e a necessidade bloqueia o discernimento. Salto sem pára-quedas, pego nela ao colo e subo as escadas, de corrimão bem torneado como as pernas dela. O calor dela trespassa-me e o cheiro já há muito que me hipnotizara.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

6/35

Ah pois és!
A névoa fina entra nos poros do meu reumatismo, os ossos queixam-se e eu teimo em fazê-los prosseguir. A ressaca e o sono sinfonizam na minha cabeça como uma banda de percussão e metais. A pele está esticada, como um bombo afinado em dó, devido à desidratação. Sinto todos os neurónios desconexos com a burrice a espalhar-se lentamente qual miasma verde qual quê.
Já não vou para novo e devia abandonar esta vida de disparates pegados, copos até tarde, directas, dormir um par de horas no carro para depois arrastar a carcaça pela praia na tentativa, inútil, de encontrar aquele grão de areia que teima em escapar ao meu olhar.
“Target aquired” soletra a voz metálica do meu computador de bordo, que é como quem diz: já estou a ver o carro. É melhor deixar o piloto automático tomar o controle da situação.
Um rapaz dos seus vinte e poucos aborda-me e pergunta algo. Não consigo entender, os meus ouvidos não estão ligados ao descodificador.
- Queres comprar uma 6/35 com seis munições?
Agora ouvi.
- Não, mas se tiveres aí uma colt commando até compro.
Viro-lhe costas e tento continuar, sem perceber muito bem o que se estava a passar, deve ser efeito colateral do álcool.
- Pára já ai, isto é um assalto!
Olho para trás e vejo o moço com a mão no bolso e o volume indica a existência da 6/35. Não aguento e começo a rir à gargalhada.
- Estás-te a rir, eu não estou a brincar.
- Estou por uma série de razões.
- Ai é?
O guna (foi promovido) hesita.
- É e passo a explicar: nada me garante que tenhas uma arma no bolso, para mim isso é um dedo; se tens uma arma os teus olhos dizem-me que não vais disparar; a melhor é que só vais roubar 1 euro!
- Como?
- Eu soletro: u m e u r o.
- Mas, mas…
- É isso e já agora já podes ficar com ele.
Estendo um euro ao aparvalhado assaltante que fica com a mão esquerda aberta a contemplar o fruto do seu trabalho.
- Mas não tens Multibanco, telemóvel, nada?
- Venho da noite e torro o dinheiro todo em copos e até estás com sorte de ter sobrado isso.
- Desculpa mas eu não acredito que não tenhas mais nada.
- Vamos lá ver. Ou confias em mim ou então nada feito. O que é feito da cortesia assaltante/assaltado? Deve ser a primeira vez que assaltas alguém.
- Por acaso até é… Preciso de dinheiro para apanhar a carreira para Paredes.
- Ok, e andas sempre com uma 6/35 com seis munições para quando te esqueces do passe em casa.
- Não.
- Ah, pensei.
- Olha… Mas dás-me o euro?
- Jovem espero que me permitas citar uma parte da nossa interlocução:
“Pára já ai, isto é um assalto!”
Da frase “isto é um assalto” qual foi a parte que não percebeste?!
Engole em seco e fica vermelho.
- Um assalto, neste caso à mão armada, pressupõe que uma pessoa roube a outra e o euro que está na tua mão foi-me roubado.
Não sei se já reparaste mas a tua pseudo arma está apontada para o chão, e dado que és metade de mim já te podia ter estendido no meio do chão. Como eu acho que é mais pedagógico viveres com esse euro, na carteira da tua consciência, vou-te deixar ir.
- Mas…
- E pronto, boa sorte para a próxima.
Viro-lhe costas e encolho os ombros. Entro no carro e vejo pelo retrovisor que o jovem se afasta com os passos a gaguejar como a voz à momentos. Confuso é certo mas vai-se fazer homem. Espero que deixe o crime.
Um carro para ao meu lado e dois agentes da PSP espreitam. Baixo o vidro.
- Bom dia Oliveira! De folga?
- É. Estive de serviço ontem à tarde, uma rusga.
- Já estava na altura de saíres do Corpo de Intervenção.
- Pois…

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Trocos


"The Moneychanger" Rembrandt - 1627

Chove como se não houvesse amanhã; alguém lá em cima se esqueceu de fechar a torneira da casa de banho, e a água está a cair toda em cima de mim. Olho para trás e por onde passei tudo está seco como se não tivesse caído uma pinga de água que fosse, e o caminho que percorrerei, está molhado, já à espera, mas não posso voltar atrás. Seguir em frente é o que tenho de fazer.

Podia dizer que são lágrimas, um lago de lágrimas, todas as que chorei (que não enchiam um copo de água), mas não são. Não choro nunca: sou seco.

Alguém, molhado como eu, sai de uma perpendicular e junta-se à caminhada, encolhe os ombros, o gesto “o que é que se há-de fazer” e sorri.

Retribuo e quando tenho que bifurcar o meu caminho, digo adeus com os olhos e continuo.

Chego à estação de metro ensopado. Nada pode ser pior que estar ensopado, principalmente nos cotovelos.

- Boa tarde, pode arranjar-me um cigarrinho?

- Sou abordado por um tipo corpulento, tipo roupeiro de casal, maciço (madeira de cerejeira) e com um ar deveras sinistro. Tiro o cigarro e tiro um para mim.

- Obrigado

- De nada.

- Olhe… por acaso não tem um euro que me empreste para ir beber uma cervejinha ali ao café?

O tom coercivo do tipo não me agrada e começa a cheirar mal. Respondo-lhe com as sobrancelhas carregadas e com o olhar fixo nos olhos dele. Não se pode mostrar medo a uma pessoas deste calibre: reage-se como com os animais; baixar ou desviar o olhar é abrir a guarda e dar azo ao ataque.

- Não tens?! Olha que eu acho que tens.

- Podes achar o que quiseres, eu sei que não tenho e ponto final.

- Será que tenho que ir ali chamar o meu primo?

A agressividade espelha-se no olhar e todo o corpo se retesa. Eu, mantenho a calma, e resolvo mostrar os meus índices de confiança.

- Se calhar é melhor, assim ele empresta-te o euro e já tens companhia para beber a tal cerveja.

- Mas estás a brincar comigo, tás-me a gozar?!

- Eu? Não, longe disso.

- Sabes de onde é que eu sou?

- Não sei mas tenho a certeza que me vais dizer, mesmo que eu não queira.

- Sou do Tarrafal!

- A alusão ao bairro social fez-me hesitar uma fracção de segundo.

- O quê, da ex-colónia? Olha que não pareces. Estás um bocadinho pálido.

Esta apanha-o completamente desprevenido. Não consegue compreender como raio é que eu não tenho medo dele e ainda por cima tenho a coragem de o gozar.

- Prontos, já vi que não vale a pena falar contigo.

- Até vale… Já te vais embora? Fica mais um bocado e fazes-me companhia até chegar o metro.

Abana a cabeça e ri-se, pensando que eu sou um caso perdido. Manifesta a intenção de ficar e pergunto-lhe:

- Olha, não tens oitenta e cinco cêntimos para carregar o meu andante?


sábado, 3 de dezembro de 2005

F1LH0S D@ PUT@

zoro
Fonte: UEFA
Li na Grande Reportagem deste sábado que, no jogo da liga italiana, que confrontava o Messina e o Inter de Milão, Marc André Zoro esteve para abandonar o campo graças aos “insultos e cânticos racistas dos adeptos do Inter de Milão.
Adriano, avançado brasileiro do Inter, foi o primeiro a tentar demovê-lo. Formou-se um cordão de jogadores de ambas as equipas. Zoro continuou em campo, mas deixou bem vincada a sua luta contra a ignorância.”
Não é novidade nenhuma que uma fatia significativa dos adeptos do Inter são racistas, coisa que eu não consigo absorver muito bem.
Século XXI, onde ninguém se pode considerar “puro sangue” (só os cavalos), dado que a mistura é um facto incontornável, e todas as raças são já uma amálgama genética.
Só uma fatia de frustrados, animais (e nisto os animais não tem culpa nenhuma) que libertam a sua fúria e ignorância, sublinho ignorância, ou melhor ainda, o medo da diferença, porque a ignorância conduz ao medo e vice-versa.
Até quando vamos assistir a estas manifestações?! A FIFA e a UEFA deviam tomar medidas drásticas em relação a estes adeptos. Se não respeitam, deviam ser identificados e ser impedidos de entrar nos estádios, para evitar estes incidentes lamentáveis que me metem um solene NOJO!

Só me apetece dizer uma coisa com o risco de ser intolerante também:
FILHOS DA PUTA!