quarta-feira, 31 de agosto de 2005

Lector in Studio


"Batalla de Aljubarrota" Mariano Maella - 1791

Vem Daqui

Frequentemente existiam confrontos entre os manos e a facção supracitada, acabando regularmente com cabeças rachadas fruto das armas utilizadas, pedras e paus. Desta forma, recheada de tropelias e cumplicidade nasceu uma amizade coesa entre a trupe de rapazes, só perturbada com a intromissão de novos amigos, adquiridos na escola.

As insignificâncias da idade como o complexo de irmão mais velho - não vais comigo para a escola nem vens ter comigo no recreio - ou o moralismo de irmão mais novo - não consigo perceber como podes fazer isso, quando tiver a tua idade nunca o vou fazer - foram as únicas coisas que podiam ter azedado a relação mas nunca conseguiram superar a cumplicidade que vinha sempre à tona.

Desde cedo que Orniciteplático se mostrou inteligente de uma forma muito camuflada, no início os professores achavam que era meio estúpido. Tudo o que lhe era mandado fazer em casa ficava confortavelmente instalado na prateleira, aparecendo incumprido na aula seguinte. Tabuadas, fichas, contas cópias, enfim tudo a que era obrigado ficava por fazer. As reguadas que lhe eram distribuídas em igualdade pelas duas mãos, para não haver invejas, funcionavam de forma contrária à esperada. Reforçavam-lhe o carácter teimoso. Quanto mais lhe mandavam fazer, menos fazia.

Ainda hoje tem uma dívida acumulada à escola de 12353 cópias, 7352 tabuadas, 12435 fichas e 98098 contas. Em compensação tudo o que fosse feito dentro das paredes da sala de aula, era cumprido à risca e com a melhor das perfeições, não obstante passar as aulas concentrado nos painéis de azulejo que a decoravam. Sabia de trás para a frente a quantidade de armas, qual as suas formas, quem lhes pegava e como, e a história que estava por trás daquela cena guerreira.

A Batalha de Aljubarrota, representada por um azulejeiro do Estado Novo, inspirava-o para fora da monotonia das aulas e punha-o a imaginar o que as personagens estavam a dizer, muito embora as bocas dos senhores não exprimissem o mínimo gesto que fosse. Via histórias e, em muitas, o cavalo, que estava em primeiro plano na imagem, confidenciava-lhe na hora das reguadas “daqui a uns anos vais ser como eles, grande, enorme e vais poder ter uma espada como a do Condestabre, novinha em folha”. Se fosse hoje dir-lhe-ia “está descansado que nós vamos aí e espetámos coices e uma destas espadas, a maior de preferência, no cú do cão raivoso que é o teu professor!” atravessada é claro.

terça-feira, 30 de agosto de 2005

Génesis IV

"Guernica" Pablo Picasso - 1937

Vem daqui

Já fora subentendido que esta família não era propriamente abastada, e a bem da verdade classificar-se-ia como remediada.
Todos os brinquedos que alguma vez teriam, seriam na sua maioria, um remediado sucedâneo dos brinquedos das crianças com quem se relacionavam. Esclareça-se também que, no Natal, eram presenteados, com um sacrifício extra dos progenitores e restante família, com brinquedos fora de série, que automaticamente eram desmontados, dada a curiosidade latente no cérebro dos jovens, em perceber como funcionavam aquelas maquinetas fascinantes.

É lógico que depois de perdidas algumas peças os objectos deixavam de ter a funcionalidade para que tinham sido concebidos. Eram então refeitos de uma forma algo cubista-minimalista e utilizados noutras tarefas, coadjuvando os brinquedos preferidos dos terríveis irmãos, preferencialmente artesanais.
Latas de sardinhas ganhavam portas, com uma tesoura de poda, e transformavam-se em carros que futuristicamente deslizavam em vez de rodar. Os homenzinhos surgiam na forma de caricas que eram fervorosamente catadas junto ao café mais próximo por entre borras de café, sacos de açúcar vazios e outras coisas que não convém descrever ao pormenor.
Com pregos e pedaços de madeira faziam-se tanques com múltiplos canhões, criando toda uma parafernália marcial que era exaustivamente discutida e regida pelo Estado Maior do Exército de Babel.

Cascas de pinheiro, habilmente escavadas com as facas de cozinha, que não raramente apareciam com os bicos partidos, transformavam-se em barcos de todas as formas e feitios, porta-aviões sem aviões, corvetas, fragatas e todos os nomes que iam aprendendo relativos à realidade naval, com a vantagem de flutuarem realmente e nunca se afundarem por muita pedrada que levassem. Com o crescimento veio a mudança de brincadeiras, com os índios e cowboys.
As espingardas eram troços de couve, que também funcionavam como sticks de hóquei; arcos feitos com mimosas e fio de pesca surripiado ao pai; lanças com os arejões que estacavam os tomateiros de um cada vez mais raivoso pai; penachos com fio de lã roubado à mãe e penas roubadas às galinhas, que muito ofendidas não paravam de cacarejar; e os lenços dos cowboys tirados à socapa do roupeiro do avó, que passava dias intermináveis com o mesmo lenço de assoar.

A imaginação dava para tudo. Cartografaram toda a rede de canalização de água das redondezas, como forma de reconhecimento técnico-táctico, para as mini-manobras militares a que se dedicavam no intervalo das actividades de faroestianos, sendo também sobremaneira úteis quando resolveram tornar-se ecologistas desmontando as armadilhas dos rivais do Lugar de Cima, que tinham como objectivo apanhar coelhos, raposas, texugos e afins.

Vai para aqui

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Pai

Assentava praça em Gondarém. Tinha uma série de “clientas” fixas que faziam valer a pena dedicar-se só àquele local. Era capaz de fazer uma viagem até Campanha e voltar à sua postura, em vez de optar pela solução mais confortável, esperar pelos clientes que não faltavam na estação.


As senhoras da Foz que lhe aclientavam a viatura tornavam o negócio bom o suficiente para a sobrevivência da sua casa, as viagens casuais funcionavam mais como gorjetas, recompensa da sua fidelidade àquela praça de táxi.

Aproveitava, todos os dias, e levava a esposa de 25 anos, 25 anos mais nova que ele, para a loja onde trabalhava, também na Foz.
Conhecera-a quando ela tinha 19. Andava enterrada na droga e na prostituição. Crescera na Sé, mais exactamente na Rua Escura, fazendo parte de uma das muitas famílias numerosas daquela zona. Cresceu e tornou-se numa rapariga bonita, apetecível, aos 14, devido às más companhias e fraqueza de espírito típica da idade, optou pelo caminho dos estupefacientes. Escusadas foram as vigias constantes dos irmãos e as sovas do pai para evitar a progressão em direcção ao fundo do poço. Teimosa e agarrada ao vício abraçou a prostituição até ao dia em que entrou no táxi para ir comprar o cavalo.
Ficou-se pela estrebaria que era a casa do taxista. Um pouco ao jeito de Ted Mundy, o homem recolheu-a e tratou dela, e passados largos meses, quando estava já limpa de tudo, ou quase, com o amor e a dedicação dele, apresentou-o à família.

As famílias humildes são muito orgulhosas em relação às esmolas, mas aquilo era um milagre. Ele pusera a menina outra vez no caminho. Automaticamente foi aceite no clã e no bairro, estava finalmente em casa.

Tenho uma filha, conta-me com a lágrima no canto da alma, que um homem não chora à frente de outro. Está em Lisboa com a mãe
- A minha primeira mulher
e com o padrasto e quando o vem visitar, a menina queixa-se
- ó paizinho, ele bate-me
e as marcas não enganam. Tem marcas no corpo que se passarem vão continuar no interior durante muito tempo.

Com a raiva a provocar tremuras no canto da boca, fustiga-me e a ele em simultâneo.
Sabe doutor, há dois anos tive uma trombose e felizmente até recuperei bem, mas não tenho a força que tinha.
De facto não se nota que sofreu o AVC, fala correctamente e não tivesse ele dado a informação nem desconfiaria de tal facto.

- É que mesmo não podendo fazer o que um homem deve fazer numa situação destas, eu juro-lhe, pela alma dos meus pais e pela felicidade da minha filhinha, que vou lá baixo em Agosto, é quando tenho férias, e vou tratar da saúde àquele filho da puta!
Ouvi com os sentimentos em frangalhos e como já estava à porta de casa disse-lhe:
- Dê-lhe umas por mim.

Paguei a corrida e afastei-me com a revolta a provocar as lágrimas. Pensei muito no assunto, e nos dias que se seguiram não consegui deixar de pensar no senhor e na filha. Um coração tão bom e altruísta tinha uma recompensa destas.

Romanticamente idealizei a situação. Sem forças para acertar o passo ao padrasto da filha, o senhor entrou em casa dele e espetou-lhe um balázio, à queima-roupa, em cada um dos cotovelos, e cuspiu-lhe:
- Bate agora em alguém ò Filho da Puta.

sábado, 27 de agosto de 2005

O encontro

O que desejamos pode voltar-se contra nós
"Estrada para Pourville" Claude Monet - 1882

Um brilho esbatido lambia a superfície da água. Pequenos raios transpunham o tecido composto pelas folhagens dos salgueiros e incidiam difusos na superfície da margem criando pequenas ilhas de sombra, desenhando um mapa irregular com uma forte predominância de formas arredondadas.

Marcara encontro ali, por ser um lugar carregado de magia e, onde com frequência se dirigia para pensar nas questões que a afligiam.

A azenha da margem direita ia, com o girar da roda, criando um som hipnotizante, que em conjunto com o correr da água pelo canal de descarga, formava notas de uma sinfonia indistinta mas agradável.

Desagradável era o motivo que a levara ali. Não era muito de marcar encontros fosse para o que fosse, mas bem lhe parecera a ideia de resolver tudo de uma vez por todas, naquele local que lhe inspirava tranquilidade e segurança.

Quando nos sentimos em casa tudo nos flui melhor, e água, com o destino natural que era o mar, acentuava a mudança e evidenciava a continuidade. Nada termina mas antes continua. Pelo menos assim estavam arrumadas as ideias na sua cabeça.

O problema residia só na sua cabeça e, de alguma forma, reconhecia isso mas não o queria aceitar, não o queria aceitar.
A chamada dessa manhã, autoritária, confiante, esmagou-o como uma coluna militar no deserto, com força, deixando marcas na areia, seriam apagadas com a próxima ventania. Sentiu uma espécie de irritação interior, não era bem raiva, muito imenso indiferença mas um pouco de ambas.

Os sentimentos em turbilhão, incendiavam o sangue, mas o racionalismo pedia calma. Sabia na perfeição que se deixasse aquela maré subir ia explodir e estragar tudo.

Por muito que se tente, todas as relações são recheadas com uma pitada de calculismo, pelo menos na fase da conquista, em que tudo é indistinto e não se consegue vislumbrar por entre a névoa da incerteza, só apalpar.

Lembrou-se das palavras trocados, dos beijos sofridos, conquista árdua, dos corpos suados, do roçar dos sentidos, da pele em contacto. Dos carinhos não trocados mas oferecidos numa forma elementar d altruísmo/egoísmo. Quando acariciamos alguém sentimo-nos bem e desperta o nosso egoísmo, é uma grande ilusão.

Tudo o que passaram lhe pareceu lógico e óbvio, mas ele já conhecia as mulheres, nunca se sabe o que lhes passa pela cabeça e toda a estabilidade ganha com a solidão vai por água abaixo em direcção ao Mar, largo e vago, sem pré-aviso.

A carta que lhe chegara às mãos, avisava-o, apontando um dedo acusador a obrigação de pagar uma multa nessa tarde. Estava sem carro e tinha marcado o Encontro com ela.
Caga na multa, pensou, pagas juros de um dia, até é um exercício de coerência para o teu carácter.

Pegou na bicicleta e pedalou em direcção certa e indesejada. “This is what you’ll get when you mess with love”, sibilinas as palavras no Ipod. Continuando a ouvir só lhe apetece perder-se pelos caminhos, no meio dos pinheiros, mais uma vez nos braços dela e esquecer toda a realidade envolvente. Afinal não é isto que interessa, de mapa na mão com uma bússola de endorfinas e encontrar o caminho?! É mesmo só isso que lhe apetece fazer mesmo que seja por breves momentos, minutos, horas, poucos dias e sentir que aquilo é momentâneo, mas real.

Nada a fazer e o passado já lhe calejou a capacidade de sofrimento. Não foram poucas as vezes em que assistiu de camarote a discursos como aquele que calculava ouvir. Os sinais estavam todos lá, os ataques premeditados, a frieza, o desvio de olhares, a ausência de toque, tudo lhe indicava o Fim, aquele que estava longe de desejar. Um interregno sim, agora o terminus…


Costuma chegar atrasado, não há motivo para preocupações. A ânsia da espera prolonga os minutos transformando-os em finos instrumentos de tortura. Sente-se ainda mais torturada com tudo o que lhe avassala o fio condutor do pensamento.

Como se foi meter numa história destas?! Não se ganha nada com relações passageiras mas, a bem da verdade, também nada se perde, e convenhamos que se deliciara com os parcos momentos, intensos, que tivera na companhia dele.

Será que o medo de sentia era mais vigoroso que o desejo e que no futuro, continuaria a evitar ser levada pelas sensações que a faziam vibrar de felicidade? Estaria a tornar-se fria e fechada ao exterior? Quando nos sentimos bem com um companheiro e a balança equilibra porque não aproveitar sem remorso ou culpa, afinal do outro lado também não existe.

Não podia deixar de sentir algo por ele, não era puro companheirismo, amizade, algo mais lhe perturbava as certezas e estava na altura de cortar a árvore pela raiz.

Lembrou-se de algo que lera há uns tempos atrás, em que o rapaz da história cabara uma possível história de amor pelas razões erradas e ficara a vida toda com naquele fardo nas costas, tudo porque não tivera coragem para continuar a enfrentar a vida e a outra pessoa. Investira muito e desistira. Saltara noventa e nove muros e quando chegou ao centésimo baixou os braços e desistiu.
Será que a atitude dela seria a mais correcta? Logo se veria.

Finalmente. Desmonta da bicicleta e sorri com a cara dura, os lábios carnudos a desejar em negação interna, não podia dar parte de fraco agora.
- Vieste, a certeza e a dúvida espelham-se no verbo.
- Sim… aconteça o que acontecer não me vou arrepender de ter vindo.
- Acaba por aqui, o soluço agarra-se com garras às cordas vocais e luta contra a vontade de gritar:
- Agarra-me!
Ele agarra-a pela cintura e beija-a.
- Quem sabe esta história possa continuar no futuro, não lhe vou pôr um ponto final, mas antes reticências.

Mergulha na água do rio e esconde as lágrimas. Quando emerge ela já lá não está, e o sal que sai do seu corpo corre em direcção ao Mar.

quinta-feira, 25 de agosto de 2005

Abstinência

Quando só, só me apetece companhia, quando acompanhado aconchego-me na solidão, é a necessidade de espaço
"Esplanada de café" Van Gogh - 1888

Quando estás muito tempo abstinente e provas de novo aquilo que esteve ausente, sentes as sensações ampliadas de uma forma tal que tudo se torna infinitamente claro.

Só sentimos as coisas na sua verdadeira essência quando delas estivemos privados. A pele é um transmissor natural de intimidade.

Já há muito tempo que não estava com um homem. O medo sobrepunha-se a tudo e a possibilidade de um envolvimento, fazia com que evitasse a proximidade. Muitas vezes sentira o desejo de tocar em alguém, mas havia sempre algo, um alarme interno que a retraía.

O último relacionamento não acabara mal, mas de alguma forma criara uma barreira que afastava mesmo aqueles que a desejavam muito. Estava na casa dos vinte e tais. Alta, elegante, bonita, um charme e uma sensualidade que, não fosse aquela barreira inconsciente que levantara, lhe garantiria todos os homens aos seus pés a fazer todo o tipo de galanteios e salamaleques só para a conquistar.

O muro auto defensivo devia-se à perfeição da relação anterior. Bem... como todas as que não são perfeitas, também esta tinha algum dia que terminar. Assim foi, mas a sua teimosia natural pugnava para manter viva a recordação perfeita, fechava-se em copas e não deixava ninguém aproximar-se.

Às vezes é preciso um momento de distracção para se encontrar a fissura que promove a destruição das defesas.

Estávamos em Julho. Sentada a contar as aventuras e desventuras das férias em Paris, estava acompanhada por um casal amigo. Riam-se com gosto e chamavam a atenção do resto da esplanada. O ar do mar dava uma frescura e um cheiro característico ao ambiente, prenunciando uma bela tarde.

- Posso?!
Perto dos 30, moreno, alto, com um sorriso nos lábios e um cigarro na mão, caderno de mercearia na outra, espalhou um pouco mais de luz pela mesa abafando a sombra do guarda-sol.

A anuência geral deu-lhe o lugar desejado e satisfeito instalou-se. Era amigo do casal, para ela, desconhecido. Uma franzir de sobrolho mútuo indicou que ambos eram antagonistas no tema que repousava na mesa. A discussão evolui e ela começa a sentir uma pontada de irritação que lhe nasce na tiróide e lhe salta pela boca.

Ele, divertido, contra argumenta com calma e num tom neutro estudado, provocando-a cada vez mais. Quando provocada, tenta sempre ser a melhor, e como ele lhe põe os nervos à flor da pele, mais vontade tem de ficar com a última palavra, e como golpe fatal, resolve ser condescendente, paternalista. Com um sorriso irónico pousa a mão sobre o braço dele e sopra-lhe:

Porque é que tens que ter sempre razão?!
O toque é automático, elaborado e provoca nele uma reacção inesperada, o corpo é percorrido por uma corrente energética que lhe eriça todos os pêlos do corpo. Fica sem palavras e confuso, afinal não é fácil emudecê-lo.
Abstraem-se de quem os rodeia e continuam com a discussão. Só deseja que lhe volte a tocar, e ela na sua ânsia de razão, que nunca é de ninguém, cada um tem a sua, continua a provocar, a esticar a corda.

- Não olhes assim para mim, diz-lhe em tom ameaçador.
- Assim como, diz ela divertida, deixando-se levar.
- Assim, devolve-lhe o olhar o melhor que pode e levanta-se.

Deixando-a a saborear a conquista prematuramente, pede desculpa e com um “Volto Já”, sai da esplanada com destino incerto.
Fica sentada alheia aos comentários do casal. Só pensa na fórmula que vai usar para dar uma lição àquele convencido, arrogante, teimoso. Com o discurso já preparado, sorri ao vê-lo chegar com um jornal e um livro debaixo do braço.

- Pensei que tinhas abandonando a luta!
- Eu nunca abandono nada, diz com um sorriso e um tom firme. Toma.

Depõe na mesa o Livro. Espantada e incapaz de disfarçar abre-o e vê uma dedicatória.

«Uma surpresa para a maior das surpresas. Já senti o teu toque, a tua pele, prendi a tua voz e a tua atenção, só me falta isto.»

“O Perfume” Patrick Suskind.

quarta-feira, 24 de agosto de 2005

A mulher Um

As barbaridades são pequenas coisas que só são entendidas pelos comedores de pão, acho que sou um desses glutões
O nascimento de Vénus - Sandro Botticelli 1485/86

Borges defende que se cruzarmos todas a s referências bibliográficas de todos os livros do mundo, chegaremos ao livro Um, o que dá origem a todos os outros. Às relações amorosas também se pode aplicar esta teoria.

Como diz um amigo meu, “A mulher Um é citada por todas as outras que se seguem”. Não é a mulher do primeiro beijo, a mulher do primeiro apalpanço, mas a mulher, a mulher Um.

Desculpem centrar todo o discurso na mulher, mas não consigo transpor a minha consciência para o sexo oposto. Devemos ter a humildade de escrever sobre aquilo que sabemos.

Há, algures no nosso passado, uma mulher que marca toda a nossa existência, condicionando todas as nossas escolhas a partir daí. Todas as outras vão ser objecto de comparação, porque esta foi, por alguma razão ou uma série delas, marcante para se tornar a base de tudo.

É díficil traduzir por palavras mas algo dá o clique, que invariavelmente coincide com a nossa passagem à idade adulta. Marcante pela cultura, pela inteligência, ou por um je ne sai quoi que nos envolve e nos aprisiona àquela imagem.

Muitos anos mais tarde estaremos felizes e contentes com a nossa mulher, não a Um mas a 543, felizes e contentes no aconchego do lar, e de vez em quando virá um flash da mulher Um.

Se porventura ficássemos com essa mulher Um, nunca saberíamos que ela era efectivamente a mulher Um, porque o termo de comparação não existiria. Pura e simplesmente estaríamos vazios desse conceito. Comparar com o que está para trás não é a mesma coisa que comparar com o que está para a frente. Estamos satisfeitos com o que temos e não temos necessidade de comparar.

As mulheres que se seguem à Um vão ser sempre comparadas a ela e com frequência espumam de raiva com a referência ao nome, mesmo que desconheçam a importância que ela teve para nós. Sentem no ar a emoção disfarçada, cheiram as feromonas quando se fala dela, é o sexto sentido a disparar. Podemos ser os maiores actores do mundo, mas é impossível disfarçar os sentimentos quando a ela nos referimos.

É curioso que a mulher Um se torna num elemento platónico da nossa história da vida. Vem-nos a memória em certas situações, e quando vem não temos a mínima esperança real de voltar a ter alguma coisa com ela. É a bibliografia de referência dos nossos relacionamentos amorosos que só é consultada inconscientemente.

E quem nunca teve a mulher Um?! Provavelmente está acompanhado por ela e se permanecer com ela até ao fim da vida, nunca saberá que ela é a Um. Também podemos incorrer no engano, na falácia intelectual de considerar uma como a Um e no fundo ainda não a termos encontrado. Que o padrão que encaixa no nosso está para aparecer de chofre na nossa vida, ou então já está ao nosso lado e não nos apercebemos disso.

E vocês, já encontraram a mulher 1?

Génesis III


"Soldado da 1ª Divisão" Kasimir Malevich - 1914

O Gerador tinha sido consciencioso, quando cumprira o serviço militar obrigatório. Não é que esta república das bananas estivesse constantemente ameaçada por um inimigo invisível extra-fronteiras, mas era necessário cumprir marcialmente este dever para com a nação.

Devido a uma providencial manopla do Destino, estivera sempre isento de comissões contra inimigos reais, o que não invalidava de todo, todos os ensinamentos teórico-práticos que lhe foram incutidos durante os três longos anos de fogo real e comezainas de carne de burro regada com whisky de contrabando.

É claro que a aprendizagem, de tão zeloso militar, invariavelmente resultava numa faca de dois gumes quando transmitida à prole. Se por um lado ia ensinando às crias como agir furtivamente quando se roubava o anual pinheiro de Natal, por outro ensinava-lhes máximas como “não delatarás o teu companheiro” ou “quando um faz merda comem todos”.

Em casa dos petizes a segunda era sempre consequência da primeira. Quando algo acontecia, o “nunca é ninguém” brotava em forma de urro louco da garganta do progenitor, e logo se providenciava um castigo para as pestes militarizadas de espírito, que não raras vezes ainda gozavam dizendo “a culpa é tua”.

As crianças coziam-se em copas e não deixavam escapar um indício que pudesse incriminar um dos camaradas, porque hoje és tu amanhã sou eu (legenda sob a foto dos miúdos com cara de quem acabou de foder qualquer coisa). Este tipo de situação exasperava o pai mas secretamente enchia-o de orgulho, os ensinamentos estavam a entrar.

terça-feira, 23 de agosto de 2005

Génesis II


"A casa de Essoyes" Pierre Renoir - 1850-1900

Vem daqui

A inevitabilidade geracional masculina do casal fez com que tentassem continuamente gerar um ente feminino. Anos mais tarde eram detentores de uma equipa de futebol de 11, sem suplentes.
Pois eis que Orniciteplático é levado pelo carinho da sua recém adquirida família para a casa que habitará até ao preciso dia de hoje, não de amanhã, mas hoje, mesmo que leia estas linhas daqui a 24 horas ou 34 anos, será sempre hoje. A obra de ficção é instantaneamente real quando regida por um autor autocrata e ditador, e não nos inibimos de fazer parecer o texto ainda mais real reafirmando certas premissas.
O autor define a qualidade temporal, espacial, e outras coisas acabadas em –al, já que ele que manda no seu pequeno universo. Mas voltaremos a este tema mais tarde.
Era uma vivenda com três quartos, nesta altura perfeitamente adequada às necessidades do agregado, mas dali a dois anos com o nascimento de mais dois pequenos seres, os dois quartos das crianças seriam equipados com beliches duplos, mais tarde triplos, aumentando o número de camas exponencialmente ao número de elementos da prole. Quando chegaram ao número 11 o Gerador passou a chamar à zona da casa ocupada pelos filhos de Babel.
Seis miúdos num quarto e cinco no outro convém referir que pelo menos era potenciar o caos. Muito embora os quartos fossem amplos e os beliche dessem uma arrumação especial, não havia espaço nas paredes que não estivesse já ocupado por rabiscos indefinidos de grafite, autocolantes de jogadores de futebol, posters de actrizes e cantoras, fotografias de amigos e papéis febrilmente manuscritos, da autoria de Orniciteplático que amareleceriam, inevitavelmente, com o tempo.
A população dava razão ao progenitor, no epíteto dado à área, com a vasta profusão de elementos visíveis, materializantes dos seus mais secretos pensamentos e emoções.
Orniciteplático desde cedo que manteve uma relação muito próxima e cúmplice com o seu irmão mais velho. Até ao ingresso na escola primária eram inseparáveis. Se um dizia mata o outro já há muito que tinha esfolado. Faziam asneiras a todo o minuto e segundo, provocando a exasperação da figura paterna, mas de certa forma a culpa era dele.

Razão

Hoje sou eu que tenho Razão!

quinta-feira, 18 de agosto de 2005

Genesis

"Criação de Adão" Miguel Ângelo - 1541

Exactamente há 26 anos atrás, nasceu uma criança, que queria a onomástica dos seus pais, padrinhos, vizinhos e demais familiares, tomasse por verdadeiro e intransmissível nome, Orniciteplático. Há exactamente 26 anos atrás, porque por desejo da narração dos acontecimentos relativos à vida deste indivíduo, deveria e deverá ficar uma personagem intemporal, e por isso terá sempre 26 anos quando o leitor começar a ler este digitaluscrito.

Desta forma também não se refere o local de nascimento porque podia ser em qualquer lugar, para além de não enquadrado num tempo também não o será no espaço.

No hospital da Misericórdia, as mobílias de cinza acetinado, os bisturis, a máquina de radiografias, o doseador de água do corredor, as batas, as máscaras cirúrgicas, os médicos, enfermeiros e anestesistas, parteiras e parturientes agiam com indiferença perante o nascimento desta, para já, inclassificável personagem, que como já referimos tomará o nome de Orniciteplático.

Ora, anos mais tarde este mesmo Orniciteplático seria encontrado, de uma forma muito descontraída e indiscutivelmente divertido na companhia de uma pessoa que seria responsável por – é melhor parar por aqui porque senão iremos na página vinte sem ainda termos saído do hospital.

Como narrávamos, antes de sermos rudemente interrompidos por uma pressinha de acrescentar elementos contemporâneos à história, Orniciteplático nasceu na indiferença de um frio hospital, mas de um amor quente e sincero, gerido inteligentemente pelos seus pais. Quente... bem, tinha que ser quente para gerar uma forma de vida que se tornaria algo tresloucada, que não louca, com o passar dos tempos. À semelhança de seu irmão, Orniciteplático fora gerado às portas do Outono, sem que ninguém tivesse tocado à campainha.
Nesse tempo, o casal gerador não era possuidor do vulgar cinescópio, conversor de feixes hertzianos em raios catódicos, criando imagens que divertem e aparvalham a audiência, ou num palavreado mais acessível, não tinham televisão. Assim a única forma de diversão e distracção era a aplicação de todas as energias em estudos de anatomia do sexo oposto.

Os Geradores, novos e ainda com privilégios de descobridores de novas sensações e emoções, primavam por dia após dia, levantar pelo menos um novo Padrão dos Descobrimentos, como marca conclusiva da dádiva de novos mundos ao mundo. E deram, Orniciteplático, ao mundo. A noite fria entrou-lhes pelas frinchas da porta insuficientemente calafetada. Esta, com o último quarto inferior da área forrado a chapa, era um convite à junção de corpos, como se isto fosse necessário.

Do quarto dos Geradores ouvia-se o choro do, que seria o, futuro irmão de Orniciteplático na divisão ao lado. A Geradora levantou-se e remediou a situação com carinho e calor, de mãe dedicada, e acalmado o petiz juntou-se ao companheiro. Sem mais imagens, que não a dos seus corpos, socorreram-se destes para ilustrar a felicidade a que estavam condenados e, aquecendo-se de forma já sobejamente conhecida, geraram uma nova vida.

Anos mais tarde Orniciteplático gozaria com os pais dizendo que naquele tempo quando o frio apertava e não havia televisão, os pais também de alguma forma se apertavam mutuamente, fazendo verdadeiras longa-metragens. Quando mês e meio depois a Terra disse ao Seminador que nova safra lhe brotava já no útero, o Gerador ficou feliz e com esperança que fosse uma menina, compunha-se o desejado casal e fechava-se a linha de produção.
Sete meses e meio depois, mais coisa menos coisa, ainda a suar em bica, ao vislumbrar o pequeno apêndice viril entre as pernas do seu secundigénito pensou, posso voltar a tentar, alguma vez há-de acontecer.

quarta-feira, 17 de agosto de 2005

O Ardina

"O Ardina" Edward Mitchell Bannister - 1869

Ao frio e à chuva, ao sol e ao vento, todos os dias saía de casa para cumprir a sua obrigação. Calcorreava as ruas da Baixa incansavelmente apregoando o jornal.


Não ganhava muito com o que fazia mas era sempre o suficiente para pôr o pão na mesa lá de casa. Os filhos, três, esperavam com impaciência a chegada do progenitor, que chegado a casa, uma casa térrea com um quarto, lá para os lados do Prado do Repouso, se sentava nos degraus da entrada a contar-lhes as histórias que lia no produto que vendia.


Não era um homem instruído, possuía a quarta classe, mas era senhor de uma imaginação prodigiosa. Os filhos frequentavam a escola primária e ficavam atentos à interpretação das histórias do pai. Descodificava a linguagem dos jornalistas para uma acessível às crianças.


Nunca lhes contava as histórias da guerra, preferia mantê-los na inocência da idade, mais tarde iria pô-los ao corrente. Ainda era cedo para começar, deixá-los lá com as brincadeiras de trepar às árvores e a descoberta na rua de um mundo sempre novo.


A mulher era costureira. Cozia e remendava os casacos e os vestidos das famílias das casas da Rua do Heroísmo. Esperava pacientemente que o marido chegasse com o pecúlio do dia para ajudar às despesas que a costura não rendia o suficiente para a comida. Para a roupa dos catraios lá ia ajudando a esmola dos clientes que cediam roupas usadas dos filhos. O que ela e o Ardina ganhavam chegava só para a comida.


Um dia a espera tornou-se insuportável. O marido tardava em chegar. Geralmente chegava por volta das nove, no máximo às nove e meia, mas isso foi num dia que ficou distraído na conversa com um cliente. Era um homem comunicador que gostava de dar duas de letra com qualquer pessoa, e tinha conversa para todos.

Nesse dia ela começou a ficar angustiada, já passava das dez e nem sinal do esforçado trabalhador. Os miúdos sem clara noção do tempo lá continuavam nos degraus à espera das histórias, mas nem a sombra provocada pelos candeeiros de gás indiciava a chegada.
Por volta da meia noite a senhora, a secar as lágrimas para os filhos não perceberem, chamou-os para dentro. Inventou uma desculpa fugaz para justificar a ausência do marido e depois de os ter aconchegado na sala, foi para o quarto chorar.


Muitos anos depois, nunca se soube o que acontecera ao valente Ardina e as crianças transformaram-se, graças ao esforço da mãe, em rapazes bem constituídos e cultos.

Um dia um deles foi pela primeira vez à Baixa e qual não foi o seu espanto quando viu o pai, como que petrificado na esquina, junto à Igreja dos Congregados, a segurar um jornal, cigarro ao canto da boca, a boina a ensombrar os olhos…


Esculpido em bronze ali estava, ao frio e à chuva, ao sol e ao vento, todos os dias.

terça-feira, 16 de agosto de 2005

Última Hora



Numa manobra de bastidores bem congeminada, Miguel de Terceleiros estabelece parceria com Humor Negro!

Em entrevista a este periódico cibernético Terceleiros exprimiu o seu contentamento por poder colaborar com tão brilhante escritor. Adiantou ainda que de futuro tentará estar à altura da qualidade literária praticado pelo escritor residente do blog “A razão tem sempre cliente”.

Referiu ainda que continuará a escrever nos seus blogs, Terceleiros e Gera Dores.

O artigo de debut foi acolhido com grande satisfação pela crítica, muito embora alguns dos leitores tivessem vontade de cobrir o autor com alcatrão e penas.

Linda de Suza, exprimiu alegria incondicional por ver a sua imagem associada a estes dois autores!

segunda-feira, 15 de agosto de 2005

O Frasco

"Cinzas" - Edvard Munch 1894
Todos os dias cobiçava aquele frasquinho, atraía-o e não sabia porquê. O rapaz era feliz, tinha tudo o que sempre desejara e o que mais desejava era aquele frasco. Tinha oito anos e todos os amigos olhavam com inveja para os brinquedos último modelo e os jogos de computador acabados de chegar aos escaparates das lojas.

Era mimado como uma criança de oito anos podia ser. Os pais adoravam-no e não havia nada que lhe recusassem. Tinha uma vida feliz recheada de todas as coisas boas da vida que uma criança desta idade pode desejar. Os pais ao contrário de muitos não estavam separados, viviam felizes e em harmonia, com empregos estáveis que permitiam passar tempo de qualidade com o pequeno.

Conheciam-no tão bem que até lhe adivinhavam os pensamentos. Quando notavam aquele brilho nos olhos, momento seguinte, tinha o que desejava.

Até ao dia…

Da janela do seu quarto via-se a casa em frente. Na janela do 2ºandar apareceu um frasco, vítreo com reflexos alaranjados. O líquido, fantasmagórico, parecia flutuar e um vento interno agitava-o provocando nuances, como se algum ser lá dentro habitasse.

Desejou-o desde o primeiro momento em que lhe pôs a vista em cima, mas os seus pais não estavam presentes para lhe adivinhar a cobiça.
Lentamente, por não ver o desejo satisfeito, começou a definhar fisicamente, mas sempre com p pequeno cérebro a engendrar forma de obter o misterioso objecto.

Como trepava muito bem, fruto de muitas brincadeiras nas árvores com os amigos, que nesta idade não há colegas, decidiu que ia roubar o frasco.

Durante dias a fio observou as movimentações da vivenda, que não existiam. Estranhamente chegou à conclusão que a casa não era habitada, muito embora alguns objectos fossem movidos. Seriam duendes invisíveis, como nas histórias que o pai lhe contava, que ao abrigo da sua vista mexiam nas coisas?!

Da janela o frasco continuava a chamá-lo, cada vez com mais intensidade.
Um algeroz passava a escassos centímetros do caixilho que enquadrava a sua obra de arte. Então porque não trepar? Seria uma questão de minutos e a coberto da noite teria sucesso concerteza. Consciente marcou para a noite seguinte.

Saiu de casa depois de ter escutado em sobressalto as movimentações dos pais. Três horas de espera deram-lhe cabo dos nervos mas aumentaram a adrenalina.
O coração estava pequenino e sorrateiro chegou à parede. Tocou no algeroz frio e sentiu um calafrio na espinha. Virou-se com medo de estar a ser observado. Ninguém. Respirou fundo e começou a ascensão. Com muito esforço chegou ao vislumbre do objectivo. Estendeu a mão, tacteou e estranhamente nada encontrou.

Procurou outra vez, e com alívio sentiu quente e frio no contacto com uma superfície lisa em forma de pêra.
Um ranger assusta-o, desequilibra-o e faz com que caia na sebe em segurança. Ao seu lado, também incólume, cai o frasco, agora tingido de vermelho.
Senta-se, e com as mãos a tremer, olha o frasco. Fica maravilhado, finalmente tem-no em sua posse, é seu e ninguém o vai impedir.

Algo perturba o ambiente. Olha em frente e vê rapidamente a sua casa a apodrecer, a cair, até se transformar num monte de cinzas.
Nem pânico sente quando as suas mãos já enrugadas começam a descarnar.

sexta-feira, 12 de agosto de 2005

Malaquias

O Edifício - "O Nome da Rosa"
Jean Jacques Annaud - Umberto Eco
Malaquias acordou com um ligeiro formigueiro nos pés. Tudo estava escuro e não se conseguia mover. Não lhe causou estranheza, já que por várias vezes a posição em que adormecia provocava pressão nas articulações e nervos, adormecendo o corpo completamente e já se sabia, era aquele despertar do torpor dolorosamente masoquista. Primeiro sentia um formigueiro, começava a recuperar a sensibilidade, depois brincava com as mãos batendo com elas em qualquer lado sem sentir nada. Achava graça a esta parte. Lembrava-lhe a infância de noviço a brincar com os ex-votos do Santo Amaro do mosteiro, só que estes não eram de cera.
O catre onde dormia era duro, coberto a palha, onde pululavam bichos de todas as formas e feitios. A cela de dimensões reduzidas possuía uma janela que estava sempre fechada, e de Inverno não deixava passar uma gota de luz que fosse.
Malaquias era bibliotecário no Mosteiro. Passava a vida rodeado de livros e fólios. Catalogava, lia e relia e tinha o hábito, para além daquele que envergava, de escrever resumos que cuidadosamente arquivava alfabeticamente.
Se vivesse no mundo extra-muros, seria garantidamente colega de tertúlia de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, dada a quantidade de cultura que absorvia, mas a humilddae religiosa não lhe permitia tais liberdades. Sabe o que sabe e não faz publicidade, nem tem com quem.
Começa a sentir uma espécie de raspagem nas pernas, e em simultâneo frio nos pés, no entanto continua sem conseguir mexer nada.
Serão as baratas a trepar em direcção a um sítio mais húmido e quente como é costume?! Muitas vezes acordou com esses infectos insectos a tentar aninhar-se e só de pensar nisso arrepia-se todo. Hoje a sensação é diferente, e como não consegue mover-se, ainda, nada lhe resta senão deixar que o sangue corra e lhe anime as carnes.
O Abade bem lhe dizia para purificar as carnes com oração e alguns castigos físicos, e ele bem se esquecia disso. Com o tempo dedicado à leitura descuidava essa e outras regras monásticas.
Esta sensação que lhe estava a fazer cócegas na zona da bacia seria um castigo por ler livros que não eram aceites pela abadia?! De futuro teria de ser mais cuidadoso com os deveres da Ordem e não os esquecer.
Um vazio de pânico instalou-se na sua caixa torácica. O pecado que cometera e estava ainda sem confesso. O desejo que lhe percorrera o corpo quando vira a jovem lavadeira que, uma semana antes, visitara o mosteiro. Todo o seu corpo correspondera à intensidade do olhar usado para apreciar as formas da cachopa. Era isso, devia estar a a ser castigado.
Era estranho que estivesse naquele estado de dormência há tanto tempo. Podia ser a confusão que o sono lhe causava que aumentava o espaço temporal. Para além disso, ao formigueiro, sucedia uma espécie de calor, e até agora sentia cada vez mais frio. Um frio que lhe chegava agora ao queixo.
Sente um sabor a terra de vasos. O nariz corresponde e reconhece o aroma neutro do húmus, esse solo carregado de substrato, e de repente todo o mundo se ilumina, exclusivamente para o olho esquerdo. A imagem, mais que a luz cega-o, e devolve-lhe as trevas, finalmente.
- Então, ainda falta muito para acabares de limpar esse esqueleto?!
- Mais vinte minutos e o Malaquias está pronto para a fotografia.

quarta-feira, 10 de agosto de 2005

Falo de Babel


"Torre de Babel" Pieter Bruegel o Velho - 1563

A minha almofada cheira a bola da traça, os meus pés não cabem na cama, ficam fora dela pelo menos quinze centímetros! Quem é que no seu perfeito juízo faz camas deste tamanho e fornece uma almofada a cheirar a bolas da traça!? A naftalina pode matar, de enjoo.


No quarto ao lado, um casal de gregos, pela língua parecem, estão a dar a trancada há cerca de duas horas, como é que vou conseguir dormir?
- Hey you fuckers, shut the fuck up, berro com a esperança que me ouçam e parem de bater com a cama na minha parede.
Reparo que a frase faz todo o sentido e rio à gargalhada. É claro que com esta brincadeira também perdi a razão. Eles continuam a partir lenha.


Acendo a luz e começo a escrever na vã tentativa de ignorar os gregos e chamar o sono.
Ainda por cima os meus lençóis têm borboletas azuis! Deve ser para combinar com a colcha em cetim. Onde é que eu vim parar, isto parece um bordel.
Já sei o que sentia o Gabito nos seus primeiros tempos de contista.
Nada mais pode correr mal. Os gregos ou turcos, ou o raio que os parta, acabam por se calar e que bom que é o silêncio.


O que é isto?! Lenhadores no lado oposto, bem perto da minha cabeça! Como é possível, não tenho sorte nenhuma!?
Franceses, com estes gemidos amaricados só podem ser franceses!
- POUCO BARULHO CARALHO, como não sei falar francês, tem que ser assim. Ignoram-me e continuam. Foda-se, porque caralho é que só eu é que trabalho no mês de Agosto?
Horas depois lá consigo adormecer, não sem antes ter berrado os pulmões em todas as nacionalidades em direcção a este Falo de Babel. Até fizeram turnos.


Acordo estremunhado com o despertador e vou tomar banho para tentar pensar, que não andei a rachar lenha durante a noite.
Acabo o banho e descubro que a toalha é nova, cheia de goma, molha mais que seca!
Conto até dez e anoto mentalmente a explicação a dar à recepção. "As toalhas podem ser lavadas para tirar a goma!"


Saio a pingar e dirijo-me ao quarto, não sem antes espalhar uma generosa quantidade de pasta de dentes nas maçanetas dos lenhadores.

"Torre de Babel" Pieter Bruegel o Velho - 1564

Ossos



Há muitos anos atrás estava num buraco rodeado de ossos. Para onde olhasse via ossos. Tíbias, úmeros, clavículas, atlas e nada me impressionava. Não havia carne naquela cova excepto a minha, com sangue a correr nas artérias, fervilhante.

Tirava terra, pazada atrás de pazada e nada me incomodava, excepto a pequena sensação de estar a cavar a minha sepultura, mas não me afectava, fazia-o com algumas piadas à mistura. Não tentava animar o espírito, que estava sempre em constante festa.

Uma chuva miudinha ia lavando o corpo nu de preconceitos, vestido de frieza, continuava a cavar.

Século XIX, diziam-me de cima, tudo o que te rodeia é século XIX. Olhava para as ossadas e pensava em Oliveira Martins, Antero de Quental, com dois tiros na boca a agonizar num banco de jardim, e todos os outros da Geração, assim como eu.
Olhei e vi toda a filosofia e cultura desse século e fiquei impávido, sereno.
Um círculo branco, dois orifícios no centro sobressaíram no castanho da terra. Um metro e oitenta e dois de profundidade, a minha altura exacta. Não consigo ver nada para o exterior, só olhando para cima.

A minha boca está ao nível de um crânio que numa posição anti natura, para quem foi enterrado pelos cânones, sorri. O maxilar, ligeiramente descaído, já me parece um grito em forma de sorriso.

No fundo, na terra que revolvi, está o círculo branco a chamar a minha mão. Sem luvas, sempre, para poder sentir a textura da terra e o branco osteológico pego nele. A minha consciência agita-se e tudo o que aprendi abalroa-me. O plástico é extraído do petróleo a partir da década de 30 do século XX. A proximidade cronológica provoca-me um arrepio frio e o meu estômago faz-me vomitar o pão e a manteiga prontamente absorvidos pela terra.

Uma coisa só, só uma me ocupa o pensamento “o meu avô foi contemporâneo destas ossadas”.
Tomar consciência da possibilidade de contacto físico ou social entre estes restos e o patriarca da minha família incomoda-me, muito.
Saio do buraco, ou tento, já não sei.

Anos passados voltei ao local e lá, em câmara ardente, estava o cunhado do meu avô, acabado de falecer.

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

A Porta entreaberta

Nada é acessório Giraça!


Henri Matisse - "A Porta da Casbah"

Acabou de sair de uma relação de dez meses, esquecendo-se de fechar a porta. Na caixa de correio deixou uma conta inflacionada de sofrimento. Relação conturbada esta. A doença dela, emocionalmente transmissível, barra todo o bom humor e optimismo impossibilitando a cura.

Aí está ele morfologicamente farrapo. Se puxares um fio desfaz-se em raiva e frustração.
Quando se fecha uma porta abre-se logo outra, o problema é quando a anterior fica entreaberta.

<> Luísa acha isto acessório <>

A porta aberta chama-se Ana, parece alentejana, tal é o cromatismo que lhe enche a face. Pele morena, cabelos loiros, grandes olhos azuis, dentes brancos. Chama a atenção como um pregão de flores.

Sempre o desejara, ele nunca tivera tempo para saciar a sede. Deixada a porta entreaberta, a melhor opção é esta, está predisposta. Já se vêem os raios de luz no compartimento.
Envolvem-se e começa o relacionamento desprendido que encaixa na forma de ser dele.

23:30 Festa Académica.

Chega ao ponto de encontro e já alguém entrou na porta. O seu espaço estava ocupado e mais uma vez se sente enganado. Duas seguidas, duas portas que teima em fechar e deixar frinchas.

Desabafa com um amigo e algumas loiras. Decide deixar tudo para trás e um encontrão devolve-lhe o contacto com a terra firme.

- Que foi ó filho da puta, diz o outro cambaleante.
O seu sorriso “não quero problemas” não resulta.
- Desculpa, não percebi.
- Sim tu ó filho da puta, alcooliza o latagão.
- Filho da puta és tu!
Desvia-se do soco e coloca tudo nos devidos lugares. Os nós dos dedos estalam e a t-shirt cor de tijolo fica vermelha. Olha para o chão e só vê preto e um nariz partido.

Agarram-lhe num braço e vê-se rodeado de armários.
Um sabor a serrim enche-lhe a boca e vê uma porta ao fundo, sem luz.

quinta-feira, 4 de agosto de 2005

Guarda



"Viver das memórias é como guardar um cemitério" Hugo Pratt

Fazia a ronda como era costume. Primeiro pelo talhão vinte e um, descendo para o catorze, acabando no sete. Recomeçava no vinte, quinze, dez, cinco, até que os visitava todos.

Tudo em ordem, afinal o que poderia correr mal num sítio daqueles?! Era uma vida como outra qualquer, a única diferença era conviver com os mortos.

São os vizinhos mais sossegados que se podem arranjar, costumava dizer quando lhe perguntavam se não tinha medo dos inquilinos do espaço guardado.

Não era difícil a sua missão. Calcorreava os talhões e verificava se tudo estava bem. Evitava que algum vândalo esclarecido viesse pôr em causa o descanso da eternidade.

Não acreditava que houvesse vida para além da morte ou coisa que se parecesse, mas era o seu trabalho e debitava da cartilha: “não somos nada nesta vida”; “do pó viemos e ao pó tornaremos”; “descanse em paz”.

Jovens, velhos, homens, mulheres, crianças, nenhum lhe provocava qualquer tipo de emoção, só não podia ver-lhes a cara. Não suportava ver a cara de um morto, pálida, de queixo caído depois de tanta vida que lhe correra nas veias.

Acabada a ronda, gostava de deambular, observar a pluralidade morfológica de campas. Cruzes e anjos, pietás e Cristos cravejados, enfim tudo o que se vê aqui, um exorcismo, a corda de fé que puxa as almas para o outro mundo, o melhor.

A quebra de rotina pode muitas vezes afectar o destino de um guarda de cemitério.

Alterou a ronda e quebrou a monotonia que lhe devorava a mente.

Rondou na diagonal e quando chegou ao talhão 7 algo lhe chamou a atenção. Uma campa era um amontoado de ferro, vidro, madeira e plástico, esculpindo um quadro de alto relevo infernal. Em vinte e um anos de guarda nunca reparara naquela escuridão na alvura dos mármores.

Largos minutos foram passados a contemplar as nuances pictóricas dos diferentes materiais. Algo lhe desvia o olhar. Um corvo aterra no mármore vizinho. Ao encarar o guarda, sorri com sorriso de corvo e voa para longe.

Podia ter seguido o voo do corvo, mas o tempo parou na data da morte da pessoa ali sepultada, 26 de Junho de 1949, um dia antes de ter nascido.

“Competente guarda deste cemitério durante 21 ano”.

Sem vontade e com o pavor na íris leu na campa seguinte, sete palmos de fundo, escura, negra:

“Competente guarda deste cemitério durante 21 ano.

26 de Junho de 1990.”


quarta-feira, 3 de agosto de 2005

Deus




Um rapaz de vinte e nove anos decidiu que não ia acabar o seu curso universitário para se dedicar a uma coisa mais terra a terra. Mudou-se com os seus livros para o Alentejo e comprou um monte isolado de tudo e todos.

Começou a plantar formigas. Com paciência e sabedoria aprendida nos livros começou aos poucos a construir a sua pequena colónia. Com uma rainha que parecia ter sido educada em Eton, criou uma sociedade produtiva que não lhe dava alimento ao corpo, mas uma enorme sensação de poder. Ter o poder sobre uma colónia de seres que são capazes de carregar cerca de oito vezes o seu próprio peso, mina-nos por dentro.

Sentava-se e observava a acção dos pequenos seres. Um dia acordou com uma ideia que não lhe saia da cabeça.

Foi até à colónia com um instrumento que tinha fabricado a partir de uma pua, na forja improvisada no celeiro, começou a criar túneis alternativos àqueles que eram minados pelas formigas.

Passados três dias concluiu a arquitectura auxiliar formiguesca e dormiu descansado, sentindo ter ajudado os pequenos seres na expansão do seu território subterrâneo.

No dia seguinte, com horror, descobriu que os túneis criados tinham sido invadidos por outra espécie de formigas, maiores e mais fortes que estavam a matar todas aquelas que considerava como suas.

Percebeu que cometera um erro e que já não havia forma de o reparar. Mexera com o livre arbítrio das formigas e conseguira que elas fossem destruídas.

O maquiavelismo começou a entranhar-se nas suas sinapses. Reformulou o instrumento que provocara a morte das formigas semeadas e construiu novos túneis que foram invadidos por formigas maiores que devoraram as formigas residentes.

Um dia, durante o dia, com toda a luz diurna que lhe cegava a alma, a casa foi invadida por gigantescas formigas brancas que o cobriram e devoraram o corpo durante muitos dias até ao Fim.

O Espelho

Durante muito tempo teve uma vida de gato feliz. O dono fazia-lhe festas, a dona dava-lhe carinho, comia o que bem lhe apetecia e era feliz assim.

Quando os donos não estavam em casa refastelava-se e fazia tudo o que as suas patas de gato deixavam fazer. Independente, como um gato tem orgulho em ser, fazia só aquilo que realmente lhe passava pela vontade de gato.

Miava como um gato, e quando apareciam visitas no seu espaço, ia roçar-se impregnando as fibras das roupas com pêlos da finura de átomos, cinzentos. As pessoas levavam assim uma recordação de gato, lembrando-se com prazer ou repugnância, mas é este o efeito dos felinos. Há quem goste.

O que é certo é que não era um gato que deixasse ninguém indiferente, por vezes até mordia os ignorantes que lhe negavam atenção.

Nunca tivera um gato na vida, era muito independente e não gostava de criar laços. Para além disso não havia gato que lhe suscitasse interesse para possível relação.
Poderia até tratar-se de ter conhecido tantos gatos na sua vida de gato, que se tornara exigente demais para abrir o seu pequeno coração ao primeiro que lhe aparecesse.
Podiam ser gatos com tantas características marcantes, que ela desejasse encontrar um gato que tivesse todas as qualidades e defeitos dos seus pretendentes possuídos.

Continua

terça-feira, 2 de agosto de 2005

Caos

Não me perguntem o que aconteceu, depois explico. Hoje é uma excepção. Apeteceu-me.
Amigo, há uma coisa que se cham sintonia, empatia, talvez padrão similar, o que é certo é que me saiu isto, e há uma relação com o que escreveste.
Há dias em que realmente se deve sair da tenda. Quando se está rodeado de boas pessoas que falam a mesma língua, nunca nada corre mal.

Estás bloqueado por pensamentos que querem sair mas nunca se atrevem apor as antenas fora da carapaça, pelo menos para a realidade exterior. A tua concha é demasiado frágil, e sabes que basta uma pequena acção para que todo o caos interior que gira contido seja colocado na luz do dia, e destrua toda a paz aparente que sentes já há muito tempo.

Passeias na praia e chutas a areia sem intenção. Sem querer perturbas o microcosmos envolvente e tudo se vira contra ti. O vento envolve o teu corpo e entra dentro da tua mente deixando-te à beira do colapso espiritual. Um guarda-sol atropela-te e recomenda-te com cores que vejas o lado bom da vida. Para catastrofista já basta a tua mão direita, que o que toca transforma em carvão. É o toque do ferreiro só é pena que não sejas ferreiro, ser-te-ia muito útil.

A noite cai, evoluis para o estado A fotofobia deixa de te incomodar. És animal da noite e consegues exprimir o que te preocupa de forma natural. Depuras a visão e vês que o teu desejo se torna realidade. O encontro com o maior desejo transforma-se no maior medo, mas não há que o ter, enfrentá-lo é talvez a melhor forma de o ultrapassar, por muitas feridas difíceis de fechar que resultem do confronto.

Pensas e deixas de pensar, o teu cérebro trabalha só com sins e nãos , os dois levam-te à atitude.
Tudo nela te agrada. A paleta cromática, as dimensões, a forma como as formas se mostram, o som que produz na nota certa, a raiz de tudo. Deixa-te ansioso.

A adrenalina pesa no sentido frontal e avanças. Tocas nas suas formas e o com o teu olhar, fixo, reconheces que tudo se encaixa. É o saber antigo transmitido pelos genes que formata a tua consciência e sabes a profundidade da experiência sem nunca ter passado por ela. Sem preconceitos encostas um dedo e a sensação é única, encontraste a tua paz. Abres o coração e ficas descansado a ver as estrelas por entre os ramos dessa árvore que procuravas.
A árvore és tu, e sabes bem.

Raquel