segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Rua 3

Vem daqui

Estivera tempo demais à espera daquele momento, mas calibrava as emoções para não correr o risco de parecer precipitado.

- Tudo isto te pode parecer demasiado estranho, mas acredita que no momento em que te vi a sorrir para mim naquele pálido reflexo do que eu sou, toda uma série de recordações de como seria ou como será me assolou como uma avalanche de sentimentos descontínuos mas acima de tudo coerentes.

Deve ser confuso para ti que um homem a quem ministras casualmente um curativo, se apresente à tua frente como o maior dos apaixonados sem nunca sequer lhe teres posto a vista em cima.

Há muitos anos atrás conheci uma rapariga que se tornou no primeiro amor platónico da minha vida, tinha eu então uma idade muito tenra para perceber os meandros da produção do Amor.
Assim como entrou na minha vida saiu, devagar e com calma mas ao mesmo tempo de chofre. Perguntei-me várias vezes o que seria feito dela e não consegui ter resposta, e concerteza que também não fiz o esforço que deveria e que faria hoje em dia para atingir um objectivo, enfim… maturidade.

Quando menos se procura mais se encontra, e foi o que aconteceu, ainda bem. Num momento em que eu já não tinha na ideia encontrar-te aqui estás tu.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

Rua 2

A noite caiu e o dia entrou-lhe pela alma sem pedir licença. A sua natureza noctívaga rejubilou com a ausência do sol. Estava sentado há tempo sem conta à porta da loja. O passeio gelara-lhe os glúteos, mantendo-se desperto em considerações várias sobre aqueles olhos verde pinheiro nórdico que lhe trespassaram a alma.
Sete e um quarto. Com passo seguro saiu pavoneando com simplicidade o corpo bem feito, mas não demais, que corava de inveja devido aos olhos que comandavam toda a mole de carne com energia categórica.
Miguel cortou-lhe o caminho e agradeceu o curativo feito há horas sem conta.
- Gostas de surpresas?
- Sim. Testa-me - e sorriu.
Minutos e poucas palavras depois, um empregado com um impecável avental/macacão azul-escuro dirigiu-se-lhes com uma bandeja carregada com o esplendor de dois cálices âmbar de Vinho do Porto.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

Rua


"La Rue Mosnier aux Paveurs" Manet.

Nessa tarde foi para a sua costumeira esplanada e o Destino quis que algo de insólito lhe acontecesse. Estava havia já duas horas repartindo o tempo entre a leitura de “Viver para contá-la” de Garcia Marquez e as suas anotações esporádicas no seu Moleskine, oferecido por uma amante sazonal. A ansiedade mental divergia-lhe, com matreirice, a atenção para a plateia do proscénio.

Ia atentando a todas as pessoas e imaginava as razões ocultas que as faziam permanecer, como figurantes de uma ópera, habituadas ao som e à imagem mas permanecendo porque realmente ali tinham que estar para compor o cenário.

Fartou-se daquela estaticidade, levantou-se em direcção a um objectivo que não discernia mas lhe parecia melhor que a falta de inspiração que lhe transcorria a mente. Deu dois passos e uma das enormes janelas do terceiro andar caiu no sítio onde estivera sentado. Ficou branco e afastou-se alheio à reacção das pessoas que lhe diziam que era um homem de sorte.

Parou para reparar que sangrava da face. Um estilhaço de vidro fixara-se abaixo do olho direito, a dor aguda fê-lo praguejar. Com a ajuda do reflexo de uma montra retirou-o. Dentro da loja uma rapariga olhava-a com o reconhecimento estampado no sorriso. Saiu e perguntou se estava bem.

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

A Galeria

Recortes esparsos, descritivos da realidade ali vivida por uns e outros boémios da cidade, estavam afixados com cola branca nas paredes.
O dono, mais uma personagem característica daquela zona ribeirinha, com o seu penteado estilo ponte, - a careca era coberta pelos fios de cabelo resistentes do lado esquerdo e faziam a ponte para o lado direito da cabeça, cobrindo de uma forma cómica a calvície que não alastraria mais – recebia com simpatia os boémios universitários. Vendia vinho a copo atraindo assim todos os apreciadores de vinho a martelo, jovens. Conseguira manter uma resistência tácita aos velhos bêbados, tarefa hercúlea mas conseguida e, a sua clientela cingia-se aos jovens universitários, bem-educados, pensantes e falantes.
Do que ele gostava era de ter os seus meninos a dar brilho à casa. Vendia também traçadinhos (anis com bagaço), ginginhas (licor de ginja) e Eduardinhos, segredo da casa. Bebia-se com gosto e pelo barato.
A sua esposa, sentada sempre no seu cadeirão de veludo, era conhecida como a Madrinha, todos os que lá entravam tinham que a cumprimentar com dois beijos e pedir-lhe a bênção. Quando soube do epíteto que os boémios lhe haviam dado “os marotos dos rapazes” entrou no jogo e começou a dar-lhes o folar todas as Páscoas, um traçadinho por cabeça. É claro que interpretou mal a analogia que se fazia com Don Corleone de Scorcese, mas era a sua simplicidade a falar.
Miguel, depois de inserido naquele microcosmos, pediu um dia aos senhores que lhe deixassem escrever, numa parede vazia, um conto sobre aquele tasco. Com o apoio do Grupo lá os convenceram e lá foi escrita, a marcador a álcool, uma história sobre que lá passava. Tornou-se tradição e uns meses depois o negócio aumentou. Pintores, escritores e fotógrafos deixaram lá a sua marca e o tasco transformou-se num espaço de exposição e mudou o nome para A Galeria.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Sei lá

O tempo está nublado e o sol que vai permeando os flocos de algodão no céu, ilumina algumas zonas do bosque dando-lhe uma coloração esquizofrénica, matizando as várias árvores de cores que não são de todo reais.

Os carvalhos, azinheiras, castanheiros e sobreiros, pejam o solo com as folhas douradas, reticuladas, caídas do Outono; estão húmidas e sentes a pontada familiar do reumático no joelho. Já estavas a precisar de espairecer e sempre soubeste que este sítio estranho, que transpira algo que não identificas, te deixa sempre mais tranquilo.

O mar está ali a cinquenta metros, sentes o sal na boca, o cheiro da maresia e o que mais te agrada, o som das ondas a bater nas rochas. Desde muito novo que vens aqui e patilhas os teus segredos com o mar e com a terra, invocando um velho rito pagão de partilha com os elementos. Há uns anos conseguiste conjugar o que te faltava.

Tiras um cigarro e lambes a superfície. Não é a primeira, nem será a última vez, juntas a pedra já queimada, minutos depois, invocas o fogo.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Homens com problemas de nomenclatura

A esplanada está cheia de pessoas a comer areia. Há pouco alguém mandou um chuto no areal, quando o vento ainda estava calmo e acabou por provocar esta algazarra de sílica voadora.

Tudo estava a correr muito bem. O dia bonito, o almoço saboroso, algumas lágrimas de ressaca, teimosas, a querer sair e um belo dia de praia a perspectivar-se. Miguel chega e dá um pontapé na areia e de um minuto para o outro, sem pré-aviso nem carta registada, o bom tempo despede-se e lá vem a ventania.

- Isto passa, diz Hugo com areia a invadir os seus caracóis, já de si revoltos, que de preto passam a loiro com tanta areia que o fustiga.

Pepe nem precisa de convite, deita-se sem tirar a roupa, cobre-se com a toalha e agarra-se à ressaca para dormir uns vinte minutos que sejam. Hugo abana a cabeça e ri-se da posição que Pepe arranjou; Miguel gargalha.

- Só mesmo ele para dormir nestas condições.

Dois minutos de sono e já tem a cara com areia por todo o lado; Hugo enquanto vai trincado alguma informa:

- Acho que provocaste aqui uma revolução. Aquele chuto que deste perturbou os camaridinhos e agora estamos fodidos.

- Ando eu a perturbar este microcosmos sem necessidade nenhuma. Olha se tivesse dado um chuto num penedo, aí é que estávamos fodidos.

Armaram a tenda à canadiana e foram-se rindo até que a situação se tornou incomportável; a areia fina invadira tudo e Pepe acordou a cuspir que já tinha areia nas pregas dos sacos, o que bastou para se porem a caminho para ambientes mais livres de particularidades.

Como eu estava a dizer ali em cima: a esplanada está cheia de pessoas a comer areia, por isso vou mandar estes três senhores para dentro do bar, não há cá esplanada para ninguém.

Estamos em Caminha, mais em concreto, na praia do Camarido, com vista para a Galiza e para o estuário do rio Minho que se permeia com o mar já ali, uns metros à frente. Estão os três acampados no parque já bem conhecido, com muitas histórias para contar a quem as quiser escutar, e agora querem qualquer coisa para molhar o bico de caçadores insaciáveis.

Sentam-se e pousam todas as tralhas na mesa, nas cadeiras, trazendo o pandemónio do exterior em forma de objectos.

- Lembrei-me agora de um sketch para o Gato Fedorento… - diz Miguel enquanto se engasga com a Super Bock e com o riso – Homens com problemas de nomenclatura!

- Ora explica lá isso – ri-se Pepe com as suas características gargalhadas mudas.

- Já vais ver.

Miguel faz sinal à empregada, moça dos seus vinte e muito poucos anos, que deve muito à beleza e nada à simpatia. Aponta para a garrafa vazia, ela entende o que bem entende e dirige-se ao balcão.

- Sempre com sede caralho.

Pepe é lento como mel a escorrer pelo vidro, era bom para ir buscar a morte, e às vezes há um lampejo de espanto quando vê Miguel e Hugo a emborcar cerveja.

A rapariga chega com uma Super acabada de abrir.

- Desculpe… - Diz Miguel quando ela já deu meia volta – Eu só queria que visse que a minha garrafa estava vazia.

As faces da rapariga passam por toda a paleta cromática do photoshop e diz timidamente:

- Desculpe… mas… eu pensei que queria outra.

- Estava a brincar! Deixe ficar.

Miguel ri-se e a rapariga suspira de alívio. Afasta-se e Hugo comenta:

- És fodido…

- Estava só a brincar, e não me parece que ela tenha ficado chateada.

- Olha, mas que raio é que isto tem a ver com os homens com problemas de nomenclatura?

- Esqueci-me disso… já sabes que as minhas ressacas são assim, dá-me assim umas brancas; mas já te mostro.

Passados dois minutos a rapariga volta a cirandar ali perto e Miguel volta ao ataque:

- Desculpe!?

- Sim – a voz dela denuncia insegurança, como se Miguel lhe fosse fazer um pedido difícil.

- Olhe menina… Eu quero uma coisa mas não me lembro do nome.

- Sabe é que ele tem problemas de nomenclatura – Pepe resolve, com o seu ar sério e neutro, deitar algumas achas para a fogueira.

- Nomencla quê?

- Nomenclatura: por vezes não consegue dar nomes às coisas… Não se lembra dos nomes.

- Bem, eu quero (não sei como se chama)… é um líquido meio castanho, quase preto; geralmente vem dentro de um recipiente branco, com desenhos ou letras por fora, em cima de um disco branco, e depois vêm acompanhado por um invólucro colorido que pode ser de papel ou plástico com uns grãos brancos no interior, que misturados com o líquido o tornam doce.

- Café – Pergunta a rapariga a medo.

- É isso mesmo, enfim, alguém que me compreende!

Ela retira-se na demanda do líquido blá bá blá, e os três ficam a rir-se.

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Untitled

Ninguém tem o mapa que indica o caminho, este tem que ser trilhado de uma forma muito própria e bem ou mal o teu tinha sido bem calcorreado, até hoje.
As dúvidas voltam e desta vez com uma dimensão própria da idade, com todas as consequências, mais importante ainda, com todas as causas, frutos do teu livre arbítrio.
Nunca ninguém disse que era fácil viver, mas rápido se chega à conclusão que é bem mais difícil sobreviver.
A rua está iluminada, e a escuridão amarela dos lampiões entra-te pelos olhos cegando-os. Sentes a alma negra e cáustica e, olhando à volta, sabes exactamente o passo que vais dar a seguir.

Não tens medo e orgulhas-te, peito inchado, de nunca o teres sentido. À nascença retiraram-te esse sentimento, nunca to deram. Ficaste isento desse mal que nos corrói a todos, os humanos, e por consequência nunca foste cobarde.
Quando miúdo não medias as consequências dos teus actos. Trepavas sempre à árvore mais alta, galgavas o fosso mais largo, transpunhas todos os obstáculos porque sabias que conseguias, tudo por não teres medo. Nos testes ias carregado de confiança, era indiferente que tirasses boa ou má nota, porque não tinhas medo.
Agora estás aqui à espera. O orgulho já se misturou com a auto-confiança, sabes que podes fazer tudo.
O cemitério é igual a muitos que viste durante a tua vida. Já viste muitas lágrimas e verteste-as tu próprio. Este está aberto vinte e quatro horas por dia, as pessoas tem a oportunidade de ver os Seus no momento em que desejarem, pelo menos a campa marmórea, branca, cinza ou granítica, fria. Não a quentura dos corpos antes do rigor, mas o frio para lembrar os visitantes que o ente querido nunca mais terá sangue quente, rápido a correr-lhe nas veias.
As grades, de ferro forjado em forma de setas estilizadas, elevam-se ameaçadoras aos céus, como que apontado o caminho aos jacentes. A lua oferece-te uma perspectiva fantasmagórica do ambiente, com a luz a incidir em tons de azul, mostrando a amálgama de cores dos túmulos.
“Carlos da Silva Santos – nascido a 23 de Junho de1933, falecido a 26 de Agosto de 1966.”
Trinta e três anos, a idade que se presume Cristo teria quando desfaleceu na cruz.
É aqui o local indicado. Acendes um cigarro ao mesmo tempo que ouves passos à tua direita. Viras a cabeça e nada vês. Apuras o ouvido naquela direcção e identificas a sua proveniência, mas lá não está ninguém. O som é de passos numa superfície com areia. O raspar é característico e em relação aos sons é raro enganares-te. Outra pessoa começaria a correr daí para fora, mas o teu medo, que não existe, deixa-te investigar.
Os passos, por estranho que pareça, continuam no mesmo sítio, e tanto quanto te é dado a entender, soam a uma marcha de pés invisíveis no mesmo local.
À medida que te aproximas o som está mais nítido; quase que ameaçador. Localizas a origem do som: uma torneira pinga sobre uma garrafa de plástico produzindo o ruído que te chamou a atenção. Ris e voltas-te em direcção ao teu posto de espera e, com surpresa, vês uma figura branca no sítio onde estavas; aproximas-te.
- Obrigado por ter vindo, especialmente nestas condições.
Um sorriso rasga-se no rosto do desconhecido, com uns lábios carnudos que se tornam finos dada a amplitude da abertura; se fosse mulher quando sorrisse pintava as orelhas com batôn.
- Meu caro, sabe que a curiosidade é um dos meus piores defeitos…
Estudas o teu interlocutor: veste um fato branco de linho, uma camisa simples do mesmo material, sapatos de sarja da mesma cor; a cara é estranhamente morena, encimada por fios de cabelo alvos como a neve; os olhos saltam à vista de um azul água que encovam naquela tez escura. Figura estranha, transpira decisão e serenidade.
- Não sei se será um defeito. Estou certo que já foi recompensado por seguir essa curiosidade.
- Não está longe da verdade, mas também já sofri alguns desaires, por isso lhe chamo defeito.
- Tudo o que é em excesso é um defeito em potência, pecamos sempre por excesso ou defeito, é irónico.
Apetece-te avançar na conversa e no que proporcionou o encontro; as palavras do homem de branco envolvem-te.
- Cá estamos nós no sítio onde tudo acaba e começa. Já sei que não é muito dado à metafísica mas eu acredito que aqui começa muita coisa, por isso o convidei para cá vir.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Gatos


"A pair of Boots" Van Gogh - 1887

De manhã esteve sol. A informação não é grande coisa e pode até ser desnecessária, mas para quem não vai ler isto hoje fica como memória. Neste momento está um frio misturado com vento que me faz rebentar os lábios e me provoca dores nas costas, das tremuras que me percorrem aleatórias mas mordazes.

Nem sei como ainda consigo escrever, os dedos não articulam e tenho a sensação de que não tarda e se vão quebrar como cristal falsificado.

O coração, esse, está quente, com uma energia renovada, não me perguntem porquê, porque a minha boca está selada, excepto para sabores.

Tenho os pés gelados, e não é costume.

Encosto o meu caderninho e resolvo ir para casa, já tenho as nádegas congeladas e em o aquecimento central está a ser desperdiçado com os gatos.

Entro e está o macho deitado no sofá. Espraiado a deixar o cheiro espalhado por todo o lado. Ronrona e vai-se mexendo a convidar a gata que por ali passeia. Ela move-se com elegância e aproxima-se com os olhos semicerrados num sorriso felino: trepa ao sofá e aninha-se junto ao gato. Fareja-o junto ao pescoço e posso jurar que ele se arrepiou, vejo o pêlo a eriçar-se mas, tanto quanto eu sei os gatos não se arrepiam.

Ela reconhece o padrão e deita-se enrolada com o seu corpo a encaixar na perfeição no dele. Ele ronrona de satisfação e aceita o que ela tem para lhe dar.

Se os gatos dessem beijos com as suas bocas pequeninas com língua de lixa, tenho a certeza que estes dois se iam entender muito bem; a forma como se olham, é estranha para felinos, decidida e sensual, aliás como o andar atlético e sinuoso.

Há cheiros que são compatíveis, que provocam a química, que ficam registados no cérebro, acho até que a melhor palavra para isso é anglófona: “imprint”. Somos animais e isto faz parte.
O sabor também indica esta compatibilidade, e o beijo é a forma de se saber isso. Beijo sem língua é como aletria sem canela, como lays sem sal. A língua transmite-nos o sabor da outra pessoa, e não importa que seja fumadora, ou que tenho comido isto e aquilo, há ali um elemento qualquer que se encaixa com o nosso padrão, que se encaixa no nosso padrão.

Olho para os gatos e sei que estão felizes naquele sofá, não os vou incomodar, vou deixá-los com aquele amor de gato, humor de gato, sexo de gato. Para lhes dar privacidade ponho-lhes um cobertor felpudo por cima.

Não se queixam, nunca se queixam mesmo não podendo dar beijos de língua.

Vou outra vez para o frio.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

Time bomb VI

Espera que já te conto uma história...
"Blonde waiting" Roy Liechtenstein - 1964

Vem daqui

a sua esposa receberá instruções que deverá cumprir à risca. Ao jantar deverá misturar o conteúdo de uma cápsula na sua bebida (claro que será inofensivo para si), e ela estará convencida que o vai adormecer.

Vai arranjar uma forma de você a acompanhar e o senhor fingirá adormecer durante o trajecto. Uma vez no local, ela deverá retirá-lo do carro e deixá-lo lá. No plano que lhe demos alguém tratará de si.

Quando ela o tirar do carro você acorda e dá-lhe um tiro, ou dois, depende da dose de raiva, e depois livra-se do corpo.

- Tiro, livrar do corpo? Espero que isso também esteja no plano senão tenho que ir alugar o “Manual de crimes banais”.

- A arma é fornecida por nós que depois devolverá à procedência. O sítio para se livrar do embrulho fica a poucos metros do local do crime. É a zona de construção de uma auto-estrada. Há lá um vazadouro de inertes onde, todos os dias, são descarregadas toneladas de pedra e terra. A única coisa que tem a fazer é atirar o corpo para o vazadouro e cubri-lo com alguma terra. No dia seguinte, a partir das seis da manhã (quando ainda não há luz), gigantescos camiões vão verter terra fazendo com que nunca mais haja sinal da sua esposa.

- Maquiavel ao vosso lado é um anjo da guarda.

- Depois de vestir umas luvas, pega no carro e estará um carro à sua espera com um duplo da sua mulher que deverá acompanhá-lo a sua casa e entrar. A meio da noite a nossa agente sairá de sua casa com o carro da sua esposa e irá até ao aeroporto deixando-o no parque de estacionamento.

De seguida a nossa agente faz o check-in no voo para Buenos Aires com um passaporte falso em nome da sua esposa. Em Buenos Aires a identidade da sua esposa esfuma-se no ar.

24 horas depois do crime você liga à polícia e participa o desaparecimento. Vai ser interrogado pela PSP e pela Judiciária mas não se preocupe, nós vamos fornecer-lhe um guião, que deve estudar e queimar, com as perguntas possíveis e respectivas respostas.

Com o decorrer da investigação, a Judiciária descobre, através do cartão de crédito, que foi movimentada uma grande quantia de dinheiro para uma conta cifrada na Argentina e que foi comprado um bilhete de ida para Buenos Aires.

Desolado o inspector vai informá-lo que a sua esposa fugiu e se encontra em parte incerta na Argentina.

Fim...

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Time bomb V


"Masterpiece" Roy Lichtenstein - 1962



- Temo que não me esteja a entender. Não vai ter que pagar nada, afinal o encomendador já o fez por si. Só queremos que seja você a fazer o serviço, não pedimos nada em troca.

O carro pára suavemente e o motorista, até agora invisível graças ao separador, revela-se e abre a porta.

- Faça o favor, diz-lhe o homem de fato.

- Estava à espera de um macaco de ginásio.

- Nós somos anti-estereótipo.

- Já deu para notar.

Uma floresta de salgueiros cercava uma casa em xisto. Olhando para trás, a única coisa que se via eram salgueiros e mais salgueiros, cortados pela estrada que conduzia à casa. Não se vislumbrava nenhuma luz a não ser a que vinha de uma janela, o que tornava difícil a identificação do local.

A porta de entrada, em carvalho, deu acesso a um corredor decorado com serigrafias numeradas de diferentes artistas, a julgar pelos rabiscos nas telas.

Conduzido pela figura esbelta da loira, chegam a uma sala com sofás de couro e uma lareira em xisto a ambientar. A cobrir grande parte das paredes quadros surrealistas que se tornavam vulgares pela quantidade.

- Estes quadros vêm mesmo a propósito. Escolheram-nos para esta noite?

- É para se sentir confortável. Ainda tentamos arranjar sarcásticos mas já estavam esgotados.

- Eu sei, estão todos em minha casa. São verdadeiros?

- São, fazem parte do nosso fundo. Temos que gastar o dinheiro em alguma coisa.

- Não tem por aí o retrato do Dorian Gray?

- Não, reza a lenda que o retrato se transformou em carne, mas isso já deve saber.

- Pois. Mas diga lá, continue a expor a sua proposta.

- Primeiro uma bebida. Jack Daniel’s, certo?

Tinha-se deslocado a uma mesa de apoio e voltava com dois copos quadrangular da marca do Tenessee.

- Sabe que este bourbon sabe a

- Banana, eu sei.

-?!

- Temos estudado os seus hábitos, gostos, leituras, tudo, por isso não se espante com o que possa acontecer.

Mas agora… Quero saber se aceita a nossa proposta.

- Desculpe. Eu nem sei quem é a pessoa em questão.

- A pessoa em questão é a sua esposa.

Os olhos dele brilharam de raiva e de satisfação e, sem pestanejar, entendeu que lhe tinha saído a lotaria. Era a melhor forma de se livrar daquela megera.

- O que é que tenho de fazer?

- Nós sabíamos que o senhor ia aceitar, afinal as coisas entre vocês não estão assim tão boas.

- Ai isso é que estão, eu quero é ver-me livre dela porque a amo.

A nota de ironia transparecia raiva e impaciência e, enquanto foi buscar a garrafa à mesa de apoio, acrescentou:

- Vamos lá despachar isto.

- O plano é o seguinte:

Continua...

terça-feira, 10 de janeiro de 2006

Time Bomb IV


"In the car" Roy Lichtenstein - 1963

Vem daqui

Borracha sobre alcatrão, é tudo o que se ouve dentro do habitáculo do automóvel enquanto vai comendo estrada. Já roda à mais de vinte minutos e a memória indica-lhe o caminho de volta. Neste momento já tem dúvidas e, embora conheça todas as estradas da zona, algumas curvas confundiram-no. Na sua mente só estão as instruções, o resto esvaziou-se. Na mão um calibre 38 com silenciador, já há muito que deixou de ser frio. Quando lhe tocou pela primeira vez (custa sempre a primeira) a temperatura basal disse-lhe que era metal, agora, a matéria da arma confunde-se com o seu suor que penetra nos poros do mineral tornando-a uma extensão da mão… pensa que a arma é a extensão do seu desejo, do seu cérebro.

Ir de encontro a algo já planeado, sem falhas, transmite-lhe uma sensação de falsa segurança, a mesma que os seus olhos fechados, num sono fingido, dão a quem conduz; sabe que não se pode agarrar a esse ténue fio que se quebra com demasiada facilidade. Ao seu lado conduzem o carro para o destino que é certo e já está escrito. O nervosismo no ar corta-se com uma faca romba de manteiga.

Entram num estradão, ouvem-se as rodas a pressionar o areão grosso e a deixá-lo para trás com as dúvidas do portador da arma; sabe o que vai fazer e agora é tarde para recuar.

O carro pára e a porta do condutor abre-se e sabe que é chegado o momento. Sente os olhos verdes a observá-lo e nem tenta imaginar o que lhe vai na cabeça.

- Vocês descontam para as Finanças?

- Não consigo deixar de rir. Exprimi-me mal. Sabe qual é o lema da nossa organização?

- De uma forma ou de outra vai-me dizer.

- Deus te dê em dobro aquilo que desejas aos outros.

- Boa, tiraram isso da parte de trás de um camião.

- Veja a nossa empresa como um boomerangue. As pessoas pedem o desejo e ele volta-se contra elas mas nunca somos nós que concretizamos os desejos.

- Boa filosofia.

- O que eu quero dizer com isto tudo é que alguém nos contratou para você desaparecer e nós queremos que vire o feitiço contra o feiticeiro, isto é se quiser.

- Se eu quiser? E se eu a denunciar à polícia não acha que tem mais lógica?!

- Tem, mas nós é que temos as informações todas e, cá para nós, esta conversa nunca existiu. Nem desconfia quem encomendou o serviço.

- Muito bem visto. Estou então, como se costuma dizer, entre a frigideira e o fogo.

A loira baixa a arma e guarda-a na carteira depois de ter retirado o silenciador.

- Acho que já não há necessidade para isto. Não tem nada a perder, só uma dor de cabeça.

- Minha amiga, eu consigo fazer uma descrição muito boa da sua cara.

- Pois pode… Mas já pensou porque é que estou assim à sua mercê?

- Gosta de viver perigosamente - ironiza.

- Quem lhe diz que esta é a minha verdadeira cara?

- Ok, isso também não interessa.

- Adiante. Nós estamos dispostos a fornecer-lhe o plano perfeito para virar o bico ao prego.

- Jogo duplo! Já não se pode confiar em ninguém. Contrata uma pessoa uma agência de assassinos a soldo, ficam com o dinheiro, voltam-se contra nós e ainda tentam sacar um dinheirito à vítima. Já não se pode confiar em ninguém.

Continua...

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Time Bomb III


Adaptação flagrante de um quadro de Liechtenstein!
Vem daqui

Sentiu, com surpresa, algo a encostar-se aos rins.

- Não diga nada, isto é uma 35mm com silenciador. Qualquer gesto e já sabe, é como nos filmes.

A voz grossa, igual a tantas outras, induzia respeito, para não dizer medo. Decidiu obedecer mesmo sem compreender.

- Está a ver o carro preto que se aproxima? Abra a porta e entre.

Anui com a cabeça e quando o automóvel pára abre a porta e dá de caras com o orifício de outra automática, empunhada por uma loira dos seus trinta anos.

- Boa noite.

- Para mim não está a ser muito boa…

- Pode ser que melhore. Sabe porque está aqui?

- Não faço a mínima ideia mas suponho que não é para ir às compras.

- Não lhe falta o sentido de humor.

- Não, só o de orientação, e o de humor só o perco quando me oferecem flores; sei que me vão pedir alguma coisa a seguir.

- E um calibre 35 não?

- Não, antes pelo contrário, na pior das hipóteses ainda me dão qualquer coisa, umas onças de chumbo.

A loira sorri com a piada.

- Bem visto. Joga poker?

- Não mas, tive aulas de bluff com o James Woods.

O sarcasmo sempre foi o seu forte, e se era desta que ia morrer, o que não lhe parecia, ao menos que fosse com boa disposição.

- Minha senhora, se me enfiar uma bala no peito acredite que me vai fazer um favor.

- Nós não fazemos nada disso, isto – faz um gesto com a arma – é só para não se pôr com ideias. Relaxe, só quero ter uma conversa consigo.

- Ok. Vamos lá à conversa mas baixe o canhão. Com as estradas que temos aqui em Portugal ainda me acontece como no Pulp Fiction.

- Ah ah ah ah! Não consigo fazer com que perca a piada mas isso já eu sabia. Comecemos então pelo início. Eu sou uma das executoras de uma empresa que trabalha com pedidos especiais; chamemos-lhe Poço dos Desejos. Realizamos coisas que as pessoas não conseguem realizar.

- Como saltar de um comboio em andamento e sobreviver?!

- Nada disso, mas se a pessoa quiser…

- Eu gostava.

- Pois… Há uma semana atrás fomos contactados com um pedido que tem a ver consigo. Citando:

“Quais são as possibilidades de fazer desaparecer a pessoa §$%#%&?”

Deve compreender que havia um email, falso é claro, bem como informações detalhadas em relação a si. Respondemos ao mail e resolvemos saber se o encomendador estava mesmo disposto a prosseguir com o pedido.

- Não consegue marcar uma mesa para três no D. Tonho para discutirmos o assunto? A senhora podia ser a mediadora da conversa.

- Bem, não brinque. Já lá vamos. A pessoa em questão insiste em ficar anónima, mas não somos amadores e depois de uma troca de email’s marcámos um encontro físico.

- Sempre gostei de blind date’s.

- Compareceu ao encontro e seguiu as instruções à risca cumprindo a sua parte do acordo.

- Que era?

- Depositar uma determinada quantia numa conta cifrada e indetectável.

Compreende que neste momento temos a faca e o queijo na mão.

- Compreendo e quer dizer que em estão a levar a uma sapataria para me oferecer uns sapatos novos e servir de comida para os peixinhos.

Continua...

terça-feira, 3 de janeiro de 2006

Time bomb II


"Starlight lakel" - Ojeda - 2000

A água cai em fluxos intermitentes no pequeno lago. Dá para entender que há um qualquer sistema eléctrico que controla os jactos de água. Capta-lhe a atenção durante algum tempo até que compreende o padrão e perde o interesse. À sua volta estão sentadas pessoas entre as quais duas raparigas, que entre divertidas e concentradas vão dissecando a matéria que se distribui, entre livros e cadernos, na mesa caótica. O interesse recai sobre a ruiva, mais na roupa que na rapariga. A importância do que tem (terá) em mãos devolve-lhe a atenção à realidade.

- Boa tarde, o que vai ser, pergunta-lhe a empregada de avental azul com as insígnias do bar.

“O que vai ser? Quando for grande?” pensa na construção frásica e morde-se para não corrigir. “Low profile, não te esqueças” e responde:

- Boa tarde, queria um café.

Espera a resposta “Se queria é porque já não quer” e arrepia-se de ter usado o Passado na frase.

- Concerteza.

A empregada dirige-se a outra mesa depois de digitar o código numérico na maquineta.

Pega no telemóvel e vai lendo as mensagens antigas tentando encurtar a espera. Completamente natural quando se aguarda por qualquer coisa ou alguém.

- Cá está, são 2 euros.

“Carotes”. Tira as moedas e paga sem articular palavra. Ainda olha para a rapariga na esperança que seja ela a desbloquear a situação mas nada acontece.

Abre o pacote de açúcar a dois terços, deita um terço na chávena enrola o resto e coloca no pires - força do hábito.

Hoje algo está diferente: o pacote é bem conhecido mas não enrola como os outros. Desenrola-o e nota que o papel é diferente do comum: a textura é próxima do acetato mas maleável; ao desenrolar torna-se momentaneamente translúcido mas retoma a cor original rapidamente.

Era disto que estava à espera, agora tinha a certeza. Toma o café com calma e abandona o bar para estudar o papel com calma.

Abre a porta da casa de banho e entra num dos compartimentos. Observa o papel depois de o desdobrar e lê:

www.wishinghell.net

Activation code: M1RACLE

Tira o portátil da mala, activa o Kanguru e escreve o endereço. A página está em branco excepto uma caixa com o título “make a wish”.

Digita o código de activação e lê:

Please create a mail adress on www.shemail.net

Carrega no link e cria uma conta com o nome de usuário:

Augustocomte@shemail.com

Abre a conta e com surpresa vê uma mensagem de Wishinghell.

Esta mensagem de email, como deve compreender, deverá ser apagada. Siga as instruções e o seu desejo será concedido.

Deverá fazer uma transferência bancária para a conta 00000153786921299.720.5 com a quantia já estipulada.

O assunto será resolvido no prazo de quarenta e oito horas após o dinheiro se encontrar em nosso poder.

Tenha uma boa vida.

Copia o número para um talão e dirige-se ao banco. Na ATM escolhe transferências e com frieza digita o código de destino e a quantia. Nem se dá ao trabalho de saber o destinatário, calcula que serão dados falsos ou momentaneamente verdadeiros.

Coloca os Armani e chora ao pensar nos momentos bons.

Continua...