sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Raivoso

Saiu de casa vespertinamente, com atitudes algo raivosas. Tinha estado, em sonhos, a matutar naquelas pequenas coisas, que todas juntas formavam uma gigantesca bola de neve, prestes a derreter com o calor da sua raiva.
Desfizera a barba com raiva e sentiu o sangue a aquecer-lhe a cara. Cortara-se. Merda, ponto de exclamação. É sempre isto, por isso é que fazer este tipo de tarefa lhe provoca raiva. Devem ser poucas as pessoas que se escanhoam por prazer.
Tomou café do outro lado da rua. No Bela Cruz, é claro. Para poder olhar, com raiva incontida, aqueles snobs amorfos e clonados, que nem sequer sabem a que sabe um bom café. Senão não tomavam café precisa e religiosamente ali! É para se poderem mostrar.
Comprou O Público e, raivosamente metódico, fez as duas palavras cruzadas e saiu. Com raiva, lembrou-se que não tinha lido o jornal. Como de costume aliás. Cento e quarenta paus para fazer palavras cruzadas e ler o Calvin. Raivoso meteu-se no carro e dirigiu-se à reunião.
Lá estava ela à espera dele. Sempre com aquele sorriso trocista de quem diz num subtil piscar de olhos, quero-te mas não te vou dar esse gostinho. Mais uma betinha armada aos caganatos. É assim que eu quero que se diga! Estou-me a cagar para os cágados, muito sinceramente! Realmente!
Era isto todos os dias. Uma menina da “socialite” (e é assim que me apetece escrever!), muito bem vestida, diga-se, olhava-o de alto a baixo, tirava-lhe as medidas e escarnecia do seu desejo. Todo o santo dia dava de caras com esta senhora. Impressionantemente olhava para ela, corava e arrancava. Até esse dia nunca tinha tido coragem para lhe dirigir palavra. Mas nesse dia raivoso, inundado por sombras violeta, parou no semáforo... e foi ter com ela. Com a mesma raiva incontida do despertar.
Riu-se. Nervosamente. O volume das calças tornou-se visível. Deu meia volta e corado voltou para o carro. Monologou e convenceu o chumaço a desaparecer. Arremeteu segunda vez e raios partam esta merda toda, pensou. O raio dos telemóveis que vibram! A sua relação com aquelas maquinetas sempre fora muito problemática. Nem por uma vez aquela volatilidade infernal lhe dera uma boa nova, ou um momento de descanso. Sempre aquele toque irritante, e ele impotente, voluntariamente não conseguindo abafar aquele misto de som e sensação. A guerra tinha sido declarada e não havia avizinhar de armistício. Atirou o telemóvel para dentro do carro.
Entretanto a senhora ria-se à gargalhada de algo que nos está a passar ao lado. Um pensamento estúpido, mas lógico passa pela cabeça do raivoso. Está-se a rir de mim. De certezinha absoluta. Atacou a rua pela terceira vez, com todas aquelas vontades de adolescente a florescerem lenta e turbilhantemente, com a adrenalina a secar-lhe a boca e a colar-lhe a língua, como se tivesse lambido uma pauta de Vivaldi, com as rosas da “Primavera” a arranhar-lhe impiedosamente a garganta e as “Quatro Estações” a cilindrar-lhe o estômago, numa azia em sol sustenido.
Engolindo o medo, num lampejo de coragem disfarçada com uma boa dose de machismo, perguntou-lhe se estaria interessada num café mais para o fim da tarde, que o desculpasse pelo atrevimento, que ele não costumava ser assim e que se calhar a menina tinha namorado, ou pior, era casada, e que não tinha o direito de a estar a incomodar desta forma e... retorquiu-lhe com uma gargalhada bem disposta e tão genuína que parecia retirada de uma farsa. Teria muito prazer, mas... não tomava café. Ele gaguejou, engoliu em seco, e reflectiu-se no seu espelho interior de miséria, vergonha, humilhação...mas terei muito gosto em acompanha-lo com uma água, disse num sorriso encantador, próprio de um flautista de serpentes.
Desajeitadamente marcou para as seis e tropeçou atabalhoadamente numa boca de incêndio e na lembrança de se ter esquecido de perguntar o nome à desconhecida. Raivosamente maldisse-se. Pensou com raiva que não tinha sorte nenhuma. Que teria que namorar com ela, que seria o fim do mundo, quer mais tarde ou mais cedo tudo iria acabar e que iria voltar à sua vidinha raivosa de sempre. Pensou que poderia ter as suas mãos em cima daqueles seios rijos como limões tisnado s pelo sol do mundo. Aleluia, finalmente ia acabar o mês de provações.
O telemóvel começou a medodiar raivosamente um excerto da Carmina Burana, a música do Old Spice, o perfume que lhe lembrava o avô. Enquanto pensava nele procurou o telemóvel em desespero por baixo dos assentos. Encontrou-o e esqueceu-se dele, do avô. Do outro lado uma voz feminina, bem disposta por sinal, dizia qualquer coisa relativa a um café e uma água.
Reconciliou-se com a maquineta e assinou o armistício.

1 comentário:

Anónimo disse...

Esses advérbios... o gabito codifica-os como chave de uma escrita ainda em apuramento! Acaba com eles, encontra novas figuras de estilo! Penso eu de que...
Abraço
kiko