quinta-feira, 3 de fevereiro de 2005

Medicina, Piso 8 cama 15

Às três da tarde entrou na recepção do hospital uma rapariga que aparentava uma idade que se enquadrava no espaço etário entre os 20 e os 30 anos. Dirigiu-se à recepção, disse o nome do doente que vinha visitar, perguntaram-lhe qual era o parentesco e pediram-lhe uma identificação como contrapartida para obter o cartão de visitante.

“Esposa” declarou. “Não tem um cartão mais recente” perguntou o funcionário, “não, é tudo o que tenho comigo” respondeu a rapariga, que pelo que vestia parecia ser contemporânea do cartão que apresentava, ou então retirada dos confins de uma serra esquecida pelos homens. O recepcionista encolheu os ombros e deu-lhe o livre-trânsito para medicina, piso 8 cama 15.

Caminhou, arrastando as socas com ruído, como se não sentisse quem passava por ela, mas quem por ela se cruzava também parecia não dar importância à sua presença, muito embora fosse uma personagem descontextualizada daquele ambiente. Como se conhecesse o caminho dirigiu-se ao local definido pelo recepcionista e excitou a sua memória numerária para identificar o 15.

Entrou e viu três camas com três cortinas a fazer meia separação entre os três corpos que ali descansavam. Aproximou-se da cama que ficava entre a 14 e a 16 e afagou a cabeça do homem que lá estava deitado. Sorriu ternamente e sussurrou-lhe “então homem, como estás?”
O homem deixou de olhar para o vazio e perguntou-lhe o que fazia ali “como vieste, que estás aqui a fazer” resmungou com surpresa.

“Vindo, omessa! Não me digas que não estás contente por me ver?”. Tirou-lhe os tubos todos e em segundos aquele velho corpo começou a respirar melhor, da posição de decúbito dorsal, a que estava condicionado há já largos anos, saiu e sentou-se na cama olhando de frente para ela, com um brilho radioso nos olhos.

“Hoje vais ter alta” disse a rapariga “até tenho aqui o cartão para ti.” Estendeu-lhe um cartão azul celeste que foi aceite com um sorriso de garoto. “Nem preciso de roupa, estou tão farto de aqui estar que vou mesmo de pijama.” Levantou-se e agarrou a mão da rapariga, saiu porta fora e quando transpôs o limiar, olhou para trás e viu, entre a 14 e a 16, o corpo de um octogenário, seco, já sem respiração, olhos a fixar o vazio, balão esvaziado de tanta vida, sofrida e completa... Feliz.

Olhou para o lado e viu a sua esposa de há sessenta anos atrás, perdida cedo demais, a dizer-lhe com o olhar “finalmente juntos, foste teimoso mas estás comigo, para sempre.”

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