sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

6/35

Ah pois és!
A névoa fina entra nos poros do meu reumatismo, os ossos queixam-se e eu teimo em fazê-los prosseguir. A ressaca e o sono sinfonizam na minha cabeça como uma banda de percussão e metais. A pele está esticada, como um bombo afinado em dó, devido à desidratação. Sinto todos os neurónios desconexos com a burrice a espalhar-se lentamente qual miasma verde qual quê.
Já não vou para novo e devia abandonar esta vida de disparates pegados, copos até tarde, directas, dormir um par de horas no carro para depois arrastar a carcaça pela praia na tentativa, inútil, de encontrar aquele grão de areia que teima em escapar ao meu olhar.
“Target aquired” soletra a voz metálica do meu computador de bordo, que é como quem diz: já estou a ver o carro. É melhor deixar o piloto automático tomar o controle da situação.
Um rapaz dos seus vinte e poucos aborda-me e pergunta algo. Não consigo entender, os meus ouvidos não estão ligados ao descodificador.
- Queres comprar uma 6/35 com seis munições?
Agora ouvi.
- Não, mas se tiveres aí uma colt commando até compro.
Viro-lhe costas e tento continuar, sem perceber muito bem o que se estava a passar, deve ser efeito colateral do álcool.
- Pára já ai, isto é um assalto!
Olho para trás e vejo o moço com a mão no bolso e o volume indica a existência da 6/35. Não aguento e começo a rir à gargalhada.
- Estás-te a rir, eu não estou a brincar.
- Estou por uma série de razões.
- Ai é?
O guna (foi promovido) hesita.
- É e passo a explicar: nada me garante que tenhas uma arma no bolso, para mim isso é um dedo; se tens uma arma os teus olhos dizem-me que não vais disparar; a melhor é que só vais roubar 1 euro!
- Como?
- Eu soletro: u m e u r o.
- Mas, mas…
- É isso e já agora já podes ficar com ele.
Estendo um euro ao aparvalhado assaltante que fica com a mão esquerda aberta a contemplar o fruto do seu trabalho.
- Mas não tens Multibanco, telemóvel, nada?
- Venho da noite e torro o dinheiro todo em copos e até estás com sorte de ter sobrado isso.
- Desculpa mas eu não acredito que não tenhas mais nada.
- Vamos lá ver. Ou confias em mim ou então nada feito. O que é feito da cortesia assaltante/assaltado? Deve ser a primeira vez que assaltas alguém.
- Por acaso até é… Preciso de dinheiro para apanhar a carreira para Paredes.
- Ok, e andas sempre com uma 6/35 com seis munições para quando te esqueces do passe em casa.
- Não.
- Ah, pensei.
- Olha… Mas dás-me o euro?
- Jovem espero que me permitas citar uma parte da nossa interlocução:
“Pára já ai, isto é um assalto!”
Da frase “isto é um assalto” qual foi a parte que não percebeste?!
Engole em seco e fica vermelho.
- Um assalto, neste caso à mão armada, pressupõe que uma pessoa roube a outra e o euro que está na tua mão foi-me roubado.
Não sei se já reparaste mas a tua pseudo arma está apontada para o chão, e dado que és metade de mim já te podia ter estendido no meio do chão. Como eu acho que é mais pedagógico viveres com esse euro, na carteira da tua consciência, vou-te deixar ir.
- Mas…
- E pronto, boa sorte para a próxima.
Viro-lhe costas e encolho os ombros. Entro no carro e vejo pelo retrovisor que o jovem se afasta com os passos a gaguejar como a voz à momentos. Confuso é certo mas vai-se fazer homem. Espero que deixe o crime.
Um carro para ao meu lado e dois agentes da PSP espreitam. Baixo o vidro.
- Bom dia Oliveira! De folga?
- É. Estive de serviço ontem à tarde, uma rusga.
- Já estava na altura de saíres do Corpo de Intervenção.
- Pois…

8 comentários:

noasfalto disse...

Antiga ou foste assaltado de novo?
Abraço

hmscroius disse...

Muito bom, muito bom. espero que não seja um a true story in great tale. Abracinho

Raquel Vasconcelos disse...

Como sempre um estilo especial.
Claro que não deixa o crime, claro que não é verdadeira, claro...
Mas há assaltos assim... por tão pouco e por vezes... mortes por ainda menos.

PR disse...

miguel.
preciso de um post pessoal.
que conte de ti.

Freddy disse...

Queres fazer uma milícia??? Vamos trajados e de mocas...!

Abraço da Zona Franca

Sukie disse...

E eu acho que não há idades para viver momentos. Cada pessoa deve viver conforme lhe apraz, sem pensar "já não tenho idade para estas parvoíces". Devemos viver não de acordo com os padrões dos outros, mas sim daqueles que nos trazem felicidade e sentido. Isto sem nunca magoar o próximo ou interferir na sua liberdade. De resto, vale tudo. Beijo

Hugo Brito disse...

corpo de intervenção: o corpo dela.

Abraço.

Poor disse...

MB!