"The Moneychanger" Rembrandt - 1627
Chove como se não houvesse amanhã; alguém lá em cima se esqueceu de fechar a torneira da casa de banho, e a água está a cair toda em cima de mim. Olho para trás e por onde passei tudo está seco como se não tivesse caído uma pinga de água que fosse, e o caminho que percorrerei, está molhado, já à espera, mas não posso voltar atrás. Seguir em frente é o que tenho de fazer.
Podia dizer que são lágrimas, um lago de lágrimas, todas as que chorei (que não enchiam um copo de água), mas não são. Não choro nunca: sou seco.
Alguém, molhado como eu, sai de uma perpendicular e junta-se à caminhada, encolhe os ombros, o gesto “o que é que se há-de fazer” e sorri.
Retribuo e quando tenho que bifurcar o meu caminho, digo adeus com os olhos e continuo.
Chego à estação de metro ensopado. Nada pode ser pior que estar ensopado, principalmente nos cotovelos.
- Boa tarde, pode arranjar-me um cigarrinho?
- Sou abordado por um tipo corpulento, tipo roupeiro de casal, maciço (madeira de cerejeira) e com um ar deveras sinistro. Tiro o cigarro e tiro um para mim.
- Obrigado
- De nada.
- Olhe… por acaso não tem um euro que me empreste para ir beber uma cervejinha ali ao café?
O tom coercivo do tipo não me agrada e começa a cheirar mal. Respondo-lhe com as sobrancelhas carregadas e com o olhar fixo nos olhos dele. Não se pode mostrar medo a uma pessoas deste calibre: reage-se como com os animais; baixar ou desviar o olhar é abrir a guarda e dar azo ao ataque.
- Não tens?! Olha que eu acho que tens.
- Podes achar o que quiseres, eu sei que não tenho e ponto final.
- Será que tenho que ir ali chamar o meu primo?
A agressividade espelha-se no olhar e todo o corpo se retesa. Eu, mantenho a calma, e resolvo mostrar os meus índices de confiança.
- Se calhar é melhor, assim ele empresta-te o euro e já tens companhia para beber a tal cerveja.
- Mas estás a brincar comigo, tás-me a gozar?!
- Eu? Não, longe disso.
- Sabes de onde é que eu sou?
- Não sei mas tenho a certeza que me vais dizer, mesmo que eu não queira.
- Sou do Tarrafal!
- A alusão ao bairro social fez-me hesitar uma fracção de segundo.
- O quê, da ex-colónia? Olha que não pareces. Estás um bocadinho pálido.
Esta apanha-o completamente desprevenido. Não consegue compreender como raio é que eu não tenho medo dele e ainda por cima tenho a coragem de o gozar.
- Prontos, já vi que não vale a pena falar contigo.
- Até vale… Já te vais embora? Fica mais um bocado e fazes-me companhia até chegar o metro.
Abana a cabeça e ri-se, pensando que eu sou um caso perdido. Manifesta a intenção de ficar e pergunto-lhe:
- Olha, não tens oitenta e cinco cêntimos para carregar o meu andante?
7 comentários:
Eh eh eh... Lindo!
:D:D E a chamuça, onde ficou a chamuça desta história indiana!? :D:D Abraço
Isto é o que se chama inverter uma situação! E então a dos 85 cêntimos para carregar andante dá-um ar de vanguarda a esta história passada em pleno século XXI!;-)
Um abraço
-Se pedisses 1 euro ao teu primo emprestavas-me 85 cêntimos e ainda ficavas a ganhar 15 cêntimos!
e viveram felizes para sempre!
Os homens não choram...A menos q estejam a ver o Titanic... ;)
abraço da Zona Franca
Ora aí está a atitude: não mostrar medo, não baixar os olhos: NUNCA! E o mesmo serve para os gajos "maus" do cerco, e da rua escura e dos outros bairros todos. E o mesmo aplica-se também a cães e a tudo. E é claro, o mesmo deve usar-se para enfrentar a vida!
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