Borracha sobre alcatrão, é tudo o que se ouve dentro do habitáculo do automóvel enquanto vai comendo estrada. Já roda à mais de vinte minutos e a memória indica-lhe o caminho de volta. Neste momento já tem dúvidas e, embora conheça todas as estradas da zona, algumas curvas confundiram-no. Na sua mente só estão as instruções, o resto esvaziou-se. Na mão um calibre 38 com silenciador, já há muito que deixou de ser frio. Quando lhe tocou pela primeira vez (custa sempre a primeira) a temperatura basal disse-lhe que era metal, agora, a matéria da arma confunde-se com o seu suor que penetra nos poros do mineral tornando-a uma extensão da mão… pensa que a arma é a extensão do seu desejo, do seu cérebro.
Ir de encontro a algo já planeado, sem falhas, transmite-lhe uma sensação de falsa segurança, a mesma que os seus olhos fechados, num sono fingido, dão a quem conduz; sabe que não se pode agarrar a esse ténue fio que se quebra com demasiada facilidade. Ao seu lado conduzem o carro para o destino que é certo e já está escrito. O nervosismo no ar corta-se com uma faca romba de manteiga.
Entram num estradão, ouvem-se as rodas a pressionar o areão grosso e a deixá-lo para trás com as dúvidas do portador da arma; sabe o que vai fazer e agora é tarde para recuar.
O carro pára e a porta do condutor abre-se e sabe que é chegado o momento. Sente os olhos verdes a observá-lo e nem tenta imaginar o que lhe vai na cabeça.
- Vocês descontam para as Finanças?
- Não consigo deixar de rir. Exprimi-me mal. Sabe qual é o lema da nossa organização?
- De uma forma ou de outra vai-me dizer.
- Deus te dê em dobro aquilo que desejas aos outros.
- Boa, tiraram isso da parte de trás de um camião.
- Veja a nossa empresa como um boomerangue. As pessoas pedem o desejo e ele volta-se contra elas mas nunca somos nós que concretizamos os desejos.
- Boa filosofia.
- O que eu quero dizer com isto tudo é que alguém nos contratou para você desaparecer e nós queremos que vire o feitiço contra o feiticeiro, isto é se quiser.
- Se eu quiser? E se eu a denunciar à polícia não acha que tem mais lógica?!
- Tem, mas nós é que temos as informações todas e, cá para nós, esta conversa nunca existiu. Nem desconfia quem encomendou o serviço.
- Muito bem visto. Estou então, como se costuma dizer, entre a frigideira e o fogo.
A loira baixa a arma e guarda-a na carteira depois de ter retirado o silenciador.
- Acho que já não há necessidade para isto. Não tem nada a perder, só uma dor de cabeça.
- Minha amiga, eu consigo fazer uma descrição muito boa da sua cara.
- Pois pode… Mas já pensou porque é que estou assim à sua mercê?
- Gosta de viver perigosamente - ironiza.
- Quem lhe diz que esta é a minha verdadeira cara?
- Ok, isso também não interessa.
- Adiante. Nós estamos dispostos a fornecer-lhe o plano perfeito para virar o bico ao prego.
- Jogo duplo! Já não se pode confiar em ninguém. Contrata uma pessoa uma agência de assassinos a soldo, ficam com o dinheiro, voltam-se contra nós e ainda tentam sacar um dinheirito à vítima. Já não se pode confiar em ninguém.
Continua...
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