terça-feira, 13 de julho de 2004

Algo Familiar

Tudo corria muito bem nessa noite. O álcool corria que era uma maravilha. Os seus dedos contavam a décima quinta cerveja que tinha em mãos, desde que saíra do jantar. Aos poucos a embriaguez tomava conta do seu corpo. Este movia-se num frenetismo africano ao som do “pay my dues” da Anastasia. Absorto do que à volta se passava deixava-se levar pela música e embebedava-se com ela. Rapidamente subiu para o banco corrido encostado parede, e começou a chamar as atenções para si. Não tardou muito e todas estavam viradas para ele e para o seu estado alcoolicamente muito bem disposto.
Confusamente ouviu algo familiar. O ar frio da noite toldava-lhe o pensamento, e a cerveja ajudava. Esvaziou-a do copo e encheu-o a custo na fonte junto ao Passeio das Virtudes. Repetiu o gesto de muitas noites de copos, que o tinham tornado habitue nessa fonte na penosa assunção de cerveja até casa. Prosseguiu a jornada, e os primeiros raios de luz amplificaram algo familiar, que era embotado pela falta dos benditos óculos de sol.
Finalmente acabara-se a longa subida e já na plana Rua do Rosário, prosseguiu a desenhar esses e zes pela rua fora, a reprimir-se em monólogo pelo excesso da noite. Algo Familiar tocou-lhe no ombro e perguntou se era sempre assim tão duro com ele próprio.
Acordou com a sensação que lhe tinha passado um rolo compressor por cima. A princípio não reconheceu o quarto onde estava, e nos momentos seguintes também não. Estava perdido num quarto que não era o dele, nem de ninguém que conhecesse, e ainda por cima, a meia luz não fazia a mínima ideia onde estava o bendito interruptor. Tacteou e encontrou-o na mesa de cabeceira, ao maldito interruptor! AHHH, A LUZ, gritou-lhe o cérebro quase a explodir. Algo Familiar se moveu e pareceu-lhe vislumbrar um corpo deitado ao seu lado...
E aí discerniu Algo Familiar, uma mulher bonita de arrepiar todos os pelos das pernas, a dormir com os cabelos negros em desalinho, com a alma perfeitamente enquadrada por uns olhos verde esmeralda, estava a acordar e os olhos brilhavam e sorriam de malandrice dizendo bom dia.
Olhou para si, para debaixo dos lencóis e com um ar nada ensaiado, atrapalhou-se e corou ao descobrir que nada tinha vestido. Rapidamente vieram-lhe à cabeça todas as coisas que podiam ter acontecido com ele como actor principal. Encarou-a e perguntou o que tinha ele feito. Muitas vezes, foi a resposta bem disposta dela, que se ria com atrapalhação dele.
Rompendo com todas as convenções, perguntou se também tinha sido bom para ele. Ela riu-se à gargalhada e que estava convencida que sim. Perguntou o nome à bela desconhecida, que lhe respondeu Algo Familiar. Era o nome dela a partir daquele momento, já que fora a única coisa que ele lhe dissera na noite anterior, que ela era Algo Familiar. Enquanto dizia isto levantou-se e por momentos ele sentiu-se numa galeria de arte, a apreciar peças magníficas. Na parede em frente estava A Passagem do Tempo do Dali, do lado esquerdo uma Primavera do Boticelli, e acabada de se levantar a escultura mais excitante do mundo, talhada de um só bloco como o David, mostrava em todo o seu esplendor a anatomia mais perfeita que já vira numa mulher. Ficou sem palavras com tanto à vontade e seguiu-a até à casa de banho.
Tropeçou em corpos gementes, espalhados aleatoriamente no chão da sala, e lembrou-se de um convite para uma rave. Algo Familiar abraçou-o pelas costas e arrastou-o para a cozinha. Tirou um cigarro e serviu-se de leite gelado do frigorífico tentando restabelecer a lucidez. Ouviu uma voz a dizer-lhe que gostava da sua forma de se alhear na dança da forma sexy como dançava, olhava, beijava e sorria, e viu algo familiar a ler-lhe os pensamentos, absorta nos seus. Beijou-o e deu-lhe o seu número de telefone, para quando quiseres estar comigo. Adoro-te.
Foi a última vez que sentiu Algo Familiar...

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