terça-feira, 13 de julho de 2004

Raiva

Encontrava-se confuso como nunca se encontrara até ao momento. A sua cabeça volteava em turbilhão, dirigindo-se lentamente em espirais finitas para um ponto com um fundo bem definido. Mancava de um olho enquanto fixava o futuro incerto e conhecido de antemão. Era o ponto final e de partida porque tanto ansiava. Lentamente sentia os frios dedos do destino a fixar-se na sua garganta. Riu-se temerariamente não sentindo ainda os seus efeitos.
Calculou com parcimónia todas as jogadas que ainda lhe restavam. Autobiograficamente olhou para o punhal que se lhe enterrava lentamente nas costas e reconheceu o executante com a precisão milimétrica de quem fazia um desenho técnico. Gargalhou na sua direcção e sentiu-se mais calmo. A veia que se lhe dilatava no crânio acalmou e o sentimento de vingança encheu-lhe todos os sentidos mesuráveis.
Enquanto escrevia toda a raiva se esvaziava e com determinação tomava decisões que lhe iam mudar a vida de qualquer forma. É impressionante como num momento de estagnação a tentativa de espezinhar alguém desperta nela todo que de bom e mau existe e a faz evoluir. A traição funciona como motivação.
Recolheu-se num casulo a aperfeiçoar todas as suas capacidades, habilidades, capacidades, para se tornar na borboleta venenosa que desferiria o golpe final. Rilhou os dentes lentamente e sentiu o marfim a ceder. Estalou os dedos e pensou nas capacidades que teria para executar tão agridoce tarefa.
Tantos anos de assassino profissional não lhe deram, ainda, o treino suficiente para poder encarar desafios pessoais. Tentou escrever, mas as gralhas eram constantes. Os dedos atropelavam-se nas teclas, como se a guerra de letras se tratasse de uma sopa, com as vogais a rir das consoantes.
Abriu a porta da sua vivenda Art Nova, decorada com portentosos azulejos, decorados com cornucópias floridas de amarelo arabizadas de azul vinoso e guiado pelo pensamento de todas as afrontas e atropelos cometidos por aquele que considerava seu amigo, agora inimigo pseudo-declarado deixou-se conduzir ao ambiente da futura felicidade e calma desfigurada pelo destino atroz desenhado a terracota por um dedo desse Judas ainda não queimado. Mas prestes a sê-lo.
Encontrou a porta fechada e chorou, chorou lágrimas ácidas que derreteram o puxador, chutou a porta e entrou de rompante no corredor como um vendaval interior. Procurou o objectivo e com raiva encontrou-o estrangulou-o crispando os dedos depois de ter lido Valquíria estou no cemitério. Adiado! Adiado, mais uma vez adiados o tormento e o prazer.
Freneticamente andou, correu, passeou e entrou no cemitério de Agramonte. Deixou-se envolver pelo silêncio, pelo chilrear dos pardais, e com toda a calma deste mundo congelou a envolvência até à vigésima quinta secção. Estacou ao vislumbre. Lá estava ele semi-encoberto por uma japoneira. Orava com a sua hipocrisia a alguém que lhe era completamente indiferente. O busto revelava uma senhora morta dois anos antes, vestida com uma capa negra de estudante. O negro da capa contrastava com o branco do mármore. O olhar vazio pressentia a tragédia que se seguiria. As flores caídas com a providencial ajuda do Outono pejavam o chão de rosa e o seu olhar tingiu-se de vermelho...
Aproximou-se e disparou. Disparou todas as palavras de repreensão e recriminação que estavam contidas pela raiva contida até ao momento. Vomitou todas as emoções com uma dor de estômago infernal que lhe moeu o íntimo da consciência e do raciocínio. Espalhou os sonhos do traidor pelo chão e nunca mais foi feliz com a vingança.

1 comentário:

Hugo Brito disse...

Traição dura.