Estava sentado na sua costumeira esplanada, a saborear o café. Eram quatro da tarde e àquela hora os transeuntes eram muitos. Sentava-se ali cerca de meia hora por dia, a bisbilhotar discretamente os afazeres das outras pessoas.
Lembrava-se sempre daquela senhora, que morava numa rua estreitinha, na sua já há muito esquecida freguesia, perdida nos confins da serra Amarela, que parcimoniosamente observava as andanças das outras pessoas, e entre um dedo e outro de prosa, recolhia todos os boatos que se transformavam em notícias e todas as notícias que se transformavam em boatos, tal era a habilidade da senhora para deturpar as coisas. Não se lembrava do seu nome, mas na aldeia chamavam-lhe a Emissora Nacional. Não tinha muito crédito na praça mas havia uma notícia ou outra que lá acabava por passar para bocas mais limpas.
Não era propriamente a afinidade com a conterrânea que o fazia estar ali sentado quase todos os dias. Gostava de observar as pessoas e imaginar para onde iriam, o que faziam ali, ler-lhes na cara as emoções para inventar personagens que pudessem encher páginas escritas de histórias fantásticas.
Pousou a chávena e abriu o livro que estava na cadeira ao lado. “Baudolino” de Umberto Eco. Curiosa personagem esta que mentia compulsivamente e se achava o criador de inúmeros acontecimentos do século XII. Quantos Baudolinos não nos passaram já pela frente e continuam a passar? A Emissora Nacional, lá na sua terra era um.
Deixou os pensamentos para trás já que, entretanto pelo canto do olho, reparou numa criatura atípica no seio daquela mole de pessoas que se comportavam todas da mesma forma. Um sem abrigo, com a perna esquerda amputada pelo joelho e pela vida, aproximou-se e por cima do ombro tentou discernir o que ele estava a ler. O Leitor ignorou a respiração etílica que sobre si caía e continuou a ler, só acordando quando o Amputado lhe perguntou:
- Então o que está a achar desse livro?
- Não é o melhor livro deste autor, mas também não é o pior, gaguejou, espantado com a questão.
Estava à espera de tudo menos daquilo, mas quem diz que os sem abrigo são incultos? Não é uma verdade absoluta, mas a sociedade torna-a quase um dogma, um mundo de aparências é o que é. Foi interrompido novamente.
- Quando não tinha ainda desgraçado a minha vida costumava ler muito, mas agora já não o posso fazer, disse com tristeza. Agora, vou lendo uns jornais que apanho no lixo, ou com muita sorte, vou encontrando uns livros abandonados. É a vida.
- Pois é, mas olhe, não se quer sentar aqui cinco minutos a tomar qualquer coisa que eu venho já? Peça o que quiser que eu falo com o senhor do café.
Entrou informou o senhor do café que servisse o seu convidado, e três lanches mistos, uma fatia de bola e uma cerveja depois, voltava ofegante. Pousou dois livros iguais na mesa e ofereceu um deles ao senhor que se desfez em lágrimas. Ele evitou os agradecimentos, e pacientemente ouviu a história que ele tinha para lhe contar. Cinco minutos depois pelo meio de uma chuva de agradecimentos, pediu desculpa e educadamente continuou a sua jornada para fazer dinheiro, quanto mais não fosse para o almoço do dia seguinte, porque para o jantar já ia bem servido. Levava no bolso alguns pastéis e sandes.
Entretanto na mesa ao lado a cena toda tinha sido seguida com atenção. Uma morena de cabelo castanho liso, por cima das lentes dos óculos de sol, ia tirando as medidas e estudando todo o envolvimento em volta daquela personagem. Brincava com o cigarro que tinha na mão e ia tirando fumaças de fumo azulado de cada vez que tirava uma passa. Pensativa olhou em volta e vendo que não era alvo de atenção, pensou que se lixe e escreveu qualquer coisa num papel.
Um cigarro depois o Benemérito levantou-se e ela ficou com a adrenalina aos saltos. Quando reparou que ele se dirigia à casa de banho, levantou-se e rapidamente colocou a marcar o livro o Papel, não sem antes ter levado com um sorriso de um casal de namorados que entretanto tinha reparado nas suas movimentações.
Setenta e três pessoas que passavam na rua (entre as quais dois polícias em ronda, dois cães pegados por um osso e três betas de argolas vestidas exactamente da mesma forma) depois, lá voltou ele. Mais aliviado, ao que parecia.
Ele aliviado e ela nervosa. Ele abriu o livro e ficou espantado, estranho café onde acontecem coisas tão sui generis, pensou. Ela com o coração a saltar-lhe pela boca, ele com a testa enrugada a olhar em volta. Mas o que é que tem o raio do papel escrito? Eu sou o narrador desta história, acho que tenho o direito de saber! Ou não? Estás a ler um livro interessante, gostei muito, se bem que ás vezes o autor cansa. Sabias que és muito giro? Desculpa o atrevimento mas gostava de te conhecer melhor.
Olhou em volta e tentou ver quem teria sido a autora da façanha. Olhou para o lado e viu um casal de namorados que olhavam para ele com cara de caso sorrindo. Na outra mesa estava uma rapariga morena de cabelos castanhos escuros lisos, de óculos de sol, que tanto quanto lhe parecia estava compenetrada num ponto no infinito. As outras mesas estavam vazias, mas tanto quanto lhe cabia saber até poderia ter sido alguém que passara na rua, até a empregada do café. E se Ela o queria conhecer como é que ele poderia dizer que sim?
Pediu um Jack Daniels, e pediu-lhe conselhos. O sorriso maroto de miúdo que está prestes a fazer asneiras, e que tão bem o caracterizava, iluminou-lhe o rosto. Entrou no café, e dois minutos depois saiu triunfante. Três voos rasantes de pombos (sobre a cabeça dos transeuntes) depois, uma garrafa de água com gás num pires, com um malmequer e um papel com “tira os óculos de sol e podes conhecer-me” escrito, chega à mesa da vizinha. A surpresa estampou-se na cara da jovem e ele teve a certeza.
Ela tirou os óculos, ele levantou-se, sentou-se na mesa dela. O casal de namorados na mesa ao lado, foi ao balcão ao pagou a despesa das três mesas. Um cigano que ia a passar tropeçou, por ir a discutir com a mulher, e partiu os dois dentes de ouro quando bateu no balde do lixo que rolou para o meio da estrada e fez com que um carro batesse num boca de incêndio, enchendo a boca de cena de água, mas nem o Leitor nem a Escritora se mexeram. Já estavam a ter uma de muitas conversas que os iria ligar um ao outro para sempre.
Lembrava-se sempre daquela senhora, que morava numa rua estreitinha, na sua já há muito esquecida freguesia, perdida nos confins da serra Amarela, que parcimoniosamente observava as andanças das outras pessoas, e entre um dedo e outro de prosa, recolhia todos os boatos que se transformavam em notícias e todas as notícias que se transformavam em boatos, tal era a habilidade da senhora para deturpar as coisas. Não se lembrava do seu nome, mas na aldeia chamavam-lhe a Emissora Nacional. Não tinha muito crédito na praça mas havia uma notícia ou outra que lá acabava por passar para bocas mais limpas.
Não era propriamente a afinidade com a conterrânea que o fazia estar ali sentado quase todos os dias. Gostava de observar as pessoas e imaginar para onde iriam, o que faziam ali, ler-lhes na cara as emoções para inventar personagens que pudessem encher páginas escritas de histórias fantásticas.
Pousou a chávena e abriu o livro que estava na cadeira ao lado. “Baudolino” de Umberto Eco. Curiosa personagem esta que mentia compulsivamente e se achava o criador de inúmeros acontecimentos do século XII. Quantos Baudolinos não nos passaram já pela frente e continuam a passar? A Emissora Nacional, lá na sua terra era um.
Deixou os pensamentos para trás já que, entretanto pelo canto do olho, reparou numa criatura atípica no seio daquela mole de pessoas que se comportavam todas da mesma forma. Um sem abrigo, com a perna esquerda amputada pelo joelho e pela vida, aproximou-se e por cima do ombro tentou discernir o que ele estava a ler. O Leitor ignorou a respiração etílica que sobre si caía e continuou a ler, só acordando quando o Amputado lhe perguntou:
- Então o que está a achar desse livro?
- Não é o melhor livro deste autor, mas também não é o pior, gaguejou, espantado com a questão.
Estava à espera de tudo menos daquilo, mas quem diz que os sem abrigo são incultos? Não é uma verdade absoluta, mas a sociedade torna-a quase um dogma, um mundo de aparências é o que é. Foi interrompido novamente.
- Quando não tinha ainda desgraçado a minha vida costumava ler muito, mas agora já não o posso fazer, disse com tristeza. Agora, vou lendo uns jornais que apanho no lixo, ou com muita sorte, vou encontrando uns livros abandonados. É a vida.
- Pois é, mas olhe, não se quer sentar aqui cinco minutos a tomar qualquer coisa que eu venho já? Peça o que quiser que eu falo com o senhor do café.
Entrou informou o senhor do café que servisse o seu convidado, e três lanches mistos, uma fatia de bola e uma cerveja depois, voltava ofegante. Pousou dois livros iguais na mesa e ofereceu um deles ao senhor que se desfez em lágrimas. Ele evitou os agradecimentos, e pacientemente ouviu a história que ele tinha para lhe contar. Cinco minutos depois pelo meio de uma chuva de agradecimentos, pediu desculpa e educadamente continuou a sua jornada para fazer dinheiro, quanto mais não fosse para o almoço do dia seguinte, porque para o jantar já ia bem servido. Levava no bolso alguns pastéis e sandes.
Entretanto na mesa ao lado a cena toda tinha sido seguida com atenção. Uma morena de cabelo castanho liso, por cima das lentes dos óculos de sol, ia tirando as medidas e estudando todo o envolvimento em volta daquela personagem. Brincava com o cigarro que tinha na mão e ia tirando fumaças de fumo azulado de cada vez que tirava uma passa. Pensativa olhou em volta e vendo que não era alvo de atenção, pensou que se lixe e escreveu qualquer coisa num papel.
Um cigarro depois o Benemérito levantou-se e ela ficou com a adrenalina aos saltos. Quando reparou que ele se dirigia à casa de banho, levantou-se e rapidamente colocou a marcar o livro o Papel, não sem antes ter levado com um sorriso de um casal de namorados que entretanto tinha reparado nas suas movimentações.
Setenta e três pessoas que passavam na rua (entre as quais dois polícias em ronda, dois cães pegados por um osso e três betas de argolas vestidas exactamente da mesma forma) depois, lá voltou ele. Mais aliviado, ao que parecia.
Ele aliviado e ela nervosa. Ele abriu o livro e ficou espantado, estranho café onde acontecem coisas tão sui generis, pensou. Ela com o coração a saltar-lhe pela boca, ele com a testa enrugada a olhar em volta. Mas o que é que tem o raio do papel escrito? Eu sou o narrador desta história, acho que tenho o direito de saber! Ou não? Estás a ler um livro interessante, gostei muito, se bem que ás vezes o autor cansa. Sabias que és muito giro? Desculpa o atrevimento mas gostava de te conhecer melhor.
Olhou em volta e tentou ver quem teria sido a autora da façanha. Olhou para o lado e viu um casal de namorados que olhavam para ele com cara de caso sorrindo. Na outra mesa estava uma rapariga morena de cabelos castanhos escuros lisos, de óculos de sol, que tanto quanto lhe parecia estava compenetrada num ponto no infinito. As outras mesas estavam vazias, mas tanto quanto lhe cabia saber até poderia ter sido alguém que passara na rua, até a empregada do café. E se Ela o queria conhecer como é que ele poderia dizer que sim?
Pediu um Jack Daniels, e pediu-lhe conselhos. O sorriso maroto de miúdo que está prestes a fazer asneiras, e que tão bem o caracterizava, iluminou-lhe o rosto. Entrou no café, e dois minutos depois saiu triunfante. Três voos rasantes de pombos (sobre a cabeça dos transeuntes) depois, uma garrafa de água com gás num pires, com um malmequer e um papel com “tira os óculos de sol e podes conhecer-me” escrito, chega à mesa da vizinha. A surpresa estampou-se na cara da jovem e ele teve a certeza.
Ela tirou os óculos, ele levantou-se, sentou-se na mesa dela. O casal de namorados na mesa ao lado, foi ao balcão ao pagou a despesa das três mesas. Um cigano que ia a passar tropeçou, por ir a discutir com a mulher, e partiu os dois dentes de ouro quando bateu no balde do lixo que rolou para o meio da estrada e fez com que um carro batesse num boca de incêndio, enchendo a boca de cena de água, mas nem o Leitor nem a Escritora se mexeram. Já estavam a ter uma de muitas conversas que os iria ligar um ao outro para sempre.
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