terça-feira, 4 de outubro de 2005

Combóio

"Train toy ride" - Claire Wolf Krantz - 1999

Calcou a gravilha com prazer. A dimensão das pedrinhas produzia um som estimulante. Como Amélie sentia prazer a mergulhar a mão nos sacos de cereais, ele comprazia-se com a fricção dos minerais. Coisa pouca.


Passou para o outro lado da linha e com o cérebro aos solavancos tentou juntar as letras desenhadas nos vasos da estação. Via mas não compreendia, como se tivesse perdido a capacidade de ler. Tinha chegado à boleia; num inglês básico respondera à pergunta do condutor

- To a train station, i'll get along.

Tinha saudades, muitas, e desejava estar com ela. Não sabia muito bem para onde ia mas se chegara até ali, nalguma altura ia encontrar. Sem mapa, só podia confiar na intuição ou numa informação dada por alguém. Como era muito desconfiado e tendencialmente do contra, não acatava os conselhos que lhe davam. Não sabia muito bem porque raio se dava ao trabalho de perguntar; seria uma manobra rebuscada de manipular o seu livre arbítrio. Não era muito de tomar decisões espontâneas, assim eram tomadas à força pela opinião dos outros.

A estação estava deserta, o que não era de espantar, perdida no meio da serra, pouca gente devia usufruir da sua existência. Ao fundo, no vale, via uma série de casas que pela vegetação envolvente e pelos buracos escuros das janelas, indicavam que já há muito estariam abandonadas. À esquerda carris perfuravam uma elevação e as vagonetas explicavam tudo.

Mas que raio de ideia, a do homem, de o deixar ali ao abandono.

Ouviu um trote, um cavalo ou algo parecido aproximava-se. Virá acompanhado?! O mais certo é que fosse um dos cavalos selvagens que vira quando o seu transporte cruzara os estradões da montanha. A solidão estava a saber bem e não queria que aparecesse alguém para estragar o momento, mas, simultaneamente, queria tirar as suas dúvidas. Primeiro surgiu uma cabeça com cabelo bem tratado e barba impecavelmente penteada; um corpo coberto por farrapos de cor impossível de discernir do uso exaustivo; por fim o cavalo branco, brilhante a combinar com a cabeça do homem.

Que figura mais estranha.

Quando as coisas são fora do comum não sabemos muito bem como reagir. O efeito surpresa ataca o estereótipo e depois de breve escaramuça moral, a confusão fica entranhada. Quando cavalo e cavaleiro se aproximaram, notou que o ginete tinha as mãos tingidas de vermelho. Recuou em sobressalto e vendo uma lata de tinta e um pincel vermelho atados ao alforge tranquilizou-se.

Não dava jeito nenhum encontrar um assassino no meio do nada.

Fez um gesto para entabular conversa mas o homem, como se ele não existisse, passou-lhe ao lado e, poucos metros adiante, desmontou. Do alforge retirou luvas brancas de borracha, colocou-as, pegou na lata e com o pincel começou a pintar os carris. Com cuidado, para a sua sombra não denunciar a sua posição, aproximou-se e observou o que o homem estava a fazer. Pintava uma espécie de serrilhado, como se o carril se tornasse num gigantesco serrote que cortaria a serra em todo o comprimento. Encolheu os ombros desistindo de perceber o que aquele estranho personagem estava para ali a maquinar.

Afastou-se e sentou-se à espera do combóio. Tirou o caderno e começou a escrever.

O eco de um apito estridente cruzou os ouvidos. Era o seu transporte a uivar.
Ao fundo uma máquina Branca deslocava-se a alta velocidade. Como estava longe ainda devia demorar uns bons três minutos a chegar.

O Pintor interrompeu a tarefa; pegou na lata e no pincel e recolocou-os no alforge; tirou as luvas grotescamente imaculadas, e com as suas mãos vermelhas-sangue – ainda não conseguia entender porquê – agarrou nas rédeas e montou. Pela primeira vez olhou para ele e com um sorriso, que parecia ter algo de mefistofélico, afastou-se a galope.
Na direcçaõ oposta aproximava-se o comboio sem diminuiçao de velocidade. Não me digas que vou ficar em terra. Quando atingiu a zona pintada, o início do serrote, descarrilou fazendo com que as pessoas que não se viam gritassem em pânico.

16 comentários:

Hugo Brito disse...

Um comboio que grita...

Hugo Brito disse...

Pessoas que descarrilam.

Anónimo disse...

Miguel

As preocupações rodeiam os homens. Por vezes o "comboio da vida" tende a descarrilar. A escrita, mesmo que estranha, tudo nos mostra, até as entranhas de uma montanha. E o "comboio da vida" volta aos carris e a vida prossegue. A tua e a de todos nós. Ate um dia!...

Poor disse...

o que vale é que há sempre um que se safa para contar a história!

kiko disse...

Carris de esperança os que conduzem o comboio fumegante pelas estreitas valas da amargura... Tudo passa, deixa marcas, cravadas a ferro, na carcaça que temos de uma vida irreal que vai decorrendo. Sentido, nenhum, mas também, onde está ele? Abraço

Anónimo disse...

Miguel
Quiosk, num conceito filosófico (de repente não me lembro da escola)pôe o dedo na ferida:se a vida não tem nenhum sentido, qual o significado de a querermos viver? Conseguirá o n/espirito ultrapassar este conceito?
Um abraço a ambos e ao hugo brito (ainda temos umas verdades a debater!)

Hugo Brito disse...

Olá Adriano,

a problemática é, se calhar, mesmo essa. Curiosamente peno que tudo fará sentido se eventualmente não o procurarmos. Um abraço.

noasfalto disse...

O combio transmitiu-me a ideia que o percurso está traçado, segue a linha. Mas, mesmo assim, por muito que os comboios descarrilem existe sempre alguém que os põe novamente em marcha.


p.s: Não pode ser apenas uma passagem de nível sem guarda?

Sukie disse...

Se era p ir ter c "ela", tudo vale a pena.

Anónimo disse...

Miguel

Fico imensamente satisfeito pela alta qualidade dos "comments" aqui expressos e que devem deixar Terceleiros feliz. Especialmente o ultimo pela simbologia directamente
apontada ao Miguel.

Faço votos que os "blogs" linkados a Terceleiros possam melhorar neste aspecto para satisfação de todos. Adriano Ribeiro. Sintra

kiko disse...

Adriano, acho que existem dois tipos de blogs: os pensantes, que obrigam o próprio autor a recalibrar sentimentos e acontecimentos; e os descontraídos, que também servem o autor, na medida em que o fazem dispersar pensamentos, deixando, à flor da pele, a faceta mundana e irreflectida de cada um.
Ambos são interessantes, ambos permitem discursos diferentes e abordagens díspares mas, em todos, um factor prevalece: a escrita fluída - essa maravilhosa possibilidade de poder escrever sem entraves mentais ou pudores imorais.
Apenas são, mais interessantes, mais saudosistas, menos literários, são. São um meio de divulgação da notícia a que chamo transviada, adulterada, é certo, mas que se apresenta, sempre, segundo uma motivação forte: a vontade de a divulgar. Essa parece-me a ideia que vigora aqui na comunidade, que não é. Abraço grande!

kiko disse...

Sei que enfiei a carapuça, mas acho que era preciso defender os fracos e oprimidos!!! Super-Ego, awayyyyyyyy!!!!! :D:D:D Abraço

Freddy disse...

O comboio vai a subir a serra... Até gostava de falar com o tipo q ficou pelo caminho... ;)

Abraço da Zona Franca

Miguel de Terceleiros disse...

Alguém me apanhou aquino meio...
obrigado pelos comentários.

PR disse...

tu estás é a preparar a edição de um livro do blog...
:-)

Anónimo disse...

Qiosk
Seu 1º" comment"
-Aceito a sua teoria e concordo plenamente.Mas o que refiro de "qualidade" refere-se aos "comments" e não à construção de um "blawg"
Seu 2º "comment"
Não entendi a expressão "já enfiei a carapuça". Será que está a referir-se ao 10º "comment" do post de Terceleiros de 24/7/05 "e agora para algo completamente diferente".Creio que se tratou de um mau momento que nunca vislumbrei no seu blog e que eu pouco acedo por manifesta falta de tempo.Mas prometo que vou entrar nele em igualdade com o Miguel.
Receba um grande abraço .