segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Olhos bem abertos

"Venus e Cupido" - Artemisia Gentileschi - 1625-30
Insónia, mais uma vez insónia. Dentro do saco cama não consegue fechar os olhos. Todo o seu corpo sonha, já há horas largas e compridas, mas os olhos não se fecham.
Sonhar acordado é bom, nunca sabemos qual a dimensão da realidade mas também não chega a ter importância. Os pensamentos são só nossos, a dormir ou despertos.

O contacto com o poliéster fá-lo sentir sexy como um gato; não um tigre; melhor, uma pantera. Sente o tecido a gemer e faz coro com ele. Suspira de prazer… ronrona lascivamente e sente-se poderoso como dentro do corpo de uma mulher. Sente o corpo a ser beijado gradualmente. Invisíveis lábios tocam-no – não consegue ver a cara – tudo está claro, repleto de luz. Chora de prazer com a secreta esperança que tudo se repita em breve.

Abraça o saco cama e a textura modifica-se, parece carne. De olhos (agora) abertos, salta do sonho e da boca escapa-se
- Nunca tinha feito o Amor com um saco cama.
- Nem eu com um gato.
O corpo liso e suave, em contraluz, sorri-lhe; todos os poros sorriem. A lágrima de satisfação surge ao canto do ser quando descobre que não foi um sonho.
Trinca-lhe o pescoço para provar o mundo real, e o sal sobe-lhe a tensão. Poças de suor espalham-se pela cama e pergunta
- Posso ficar dentro de ti para sempre?!
- Já estás.
Acorda estremunhado e não reconhece o ambiente. Ao seu lado uma mulher de olhos abertos. Não a reconhece mas também não se preocupa; o sentimento é bom. Das últimas vezes não tinha sido nada bom, antes péssimo, tanto é que ganhara pavor ao risco. Arrependia-se sempre no dia seguinte.

Naquele momento, com aquela mulher, com aqueles lençóis, naquela cama, sentia-se bem, tão bem que nem havia mau hálito.

A felicidade relativa coagula-nos os sentidos.

A expressão de paz nos olhos da desconhecida agrada-lhe. Por muito tempo fica em êxtase; contempla aquele momento, pintura, escultura; controla a respiração para não a acordar dos olhos abertos.
Simples mas portadora de felicidade. A sensação.
- Porque choras?
Acordara.
- Quase que consigo acreditar em Deus só de olhar para ti.
- A Abstinência é uma droga fodida, não é?!

4 comentários:

Hugo Brito disse...

Eyes wide shut, should I say. Bom final.:D

noasfalto disse...

Um gato ou um puma?

Fantástica narrativa!

Poor disse...

dream on.

Miguel de Terceleiros disse...

Hugo: o Final é o começo de muita coisa, mas o que interessa saber é se temos a coragem de começar.

PEPE: vai esfregando (chorando) e acreditando em dEus.

Noasfalto: um ratinho (lol)

Meia: nunca desistirei de tentar sonhar. beijo