Ninguém tem o mapa que indica o caminho, este tem que ser trilhado de uma forma muito própria e bem ou mal o teu tinha sido bem calcorreado, até hoje.
As dúvidas voltam e desta vez com uma dimensão própria da idade, com todas as consequências, mais importante ainda, com todas as causas, frutos do teu livre arbítrio.
Nunca ninguém disse que era fácil viver, mas rápido se chega à conclusão que é bem mais difícil sobreviver.
A rua está iluminada, e a escuridão amarela dos lampiões entra-te pelos olhos cegando-os. Sentes a alma negra e cáustica e, olhando à volta, sabes exactamente o passo que vais dar a seguir.
Não tens medo e orgulhas-te, peito inchado, de nunca o teres sentido. À nascença retiraram-te esse sentimento, nunca to deram. Ficaste isento desse mal que nos corrói a todos, os humanos, e por consequência nunca foste cobarde.
Quando miúdo não medias as consequências dos teus actos. Trepavas sempre à árvore mais alta, galgavas o fosso mais largo, transpunhas todos os obstáculos porque sabias que conseguias, tudo por não teres medo. Nos testes ias carregado de confiança, era indiferente que tirasses boa ou má nota, porque não tinhas medo.
Agora estás aqui à espera. O orgulho já se misturou com a auto-confiança, sabes que podes fazer tudo.
O cemitério é igual a muitos que viste durante a tua vida. Já viste muitas lágrimas e verteste-as tu próprio. Este está aberto vinte e quatro horas por dia, as pessoas tem a oportunidade de ver os Seus no momento em que desejarem, pelo menos a campa marmórea, branca, cinza ou granítica, fria. Não a quentura dos corpos antes do rigor, mas o frio para lembrar os visitantes que o ente querido nunca mais terá sangue quente, rápido a correr-lhe nas veias.
As grades, de ferro forjado em forma de setas estilizadas, elevam-se ameaçadoras aos céus, como que apontado o caminho aos jacentes. A lua oferece-te uma perspectiva fantasmagórica do ambiente, com a luz a incidir em tons de azul, mostrando a amálgama de cores dos túmulos.
“Carlos da Silva Santos – nascido a 23 de Junho de1933, falecido a 26 de Agosto de 1966.”
Trinta e três anos, a idade que se presume Cristo teria quando desfaleceu na cruz.
É aqui o local indicado. Acendes um cigarro ao mesmo tempo que ouves passos à tua direita. Viras a cabeça e nada vês. Apuras o ouvido naquela direcção e identificas a sua proveniência, mas lá não está ninguém. O som é de passos numa superfície com areia. O raspar é característico e em relação aos sons é raro enganares-te. Outra pessoa começaria a correr daí para fora, mas o teu medo, que não existe, deixa-te investigar.
Os passos, por estranho que pareça, continuam no mesmo sítio, e tanto quanto te é dado a entender, soam a uma marcha de pés invisíveis no mesmo local.
À medida que te aproximas o som está mais nítido; quase que ameaçador. Localizas a origem do som: uma torneira pinga sobre uma garrafa de plástico produzindo o ruído que te chamou a atenção. Ris e voltas-te em direcção ao teu posto de espera e, com surpresa, vês uma figura branca no sítio onde estavas; aproximas-te.
- Obrigado por ter vindo, especialmente nestas condições.
Um sorriso rasga-se no rosto do desconhecido, com uns lábios carnudos que se tornam finos dada a amplitude da abertura; se fosse mulher quando sorrisse pintava as orelhas com batôn.
- Meu caro, sabe que a curiosidade é um dos meus piores defeitos…
Estudas o teu interlocutor: veste um fato branco de linho, uma camisa simples do mesmo material, sapatos de sarja da mesma cor; a cara é estranhamente morena, encimada por fios de cabelo alvos como a neve; os olhos saltam à vista de um azul água que encovam naquela tez escura. Figura estranha, transpira decisão e serenidade.
- Não sei se será um defeito. Estou certo que já foi recompensado por seguir essa curiosidade.
- Não está longe da verdade, mas também já sofri alguns desaires, por isso lhe chamo defeito.
- Tudo o que é em excesso é um defeito em potência, pecamos sempre por excesso ou defeito, é irónico.
Apetece-te avançar na conversa e no que proporcionou o encontro; as palavras do homem de branco envolvem-te.
- Cá estamos nós no sítio onde tudo acaba e começa. Já sei que não é muito dado à metafísica mas eu acredito que aqui começa muita coisa, por isso o convidei para cá vir.
As dúvidas voltam e desta vez com uma dimensão própria da idade, com todas as consequências, mais importante ainda, com todas as causas, frutos do teu livre arbítrio.
Nunca ninguém disse que era fácil viver, mas rápido se chega à conclusão que é bem mais difícil sobreviver.
A rua está iluminada, e a escuridão amarela dos lampiões entra-te pelos olhos cegando-os. Sentes a alma negra e cáustica e, olhando à volta, sabes exactamente o passo que vais dar a seguir.
Não tens medo e orgulhas-te, peito inchado, de nunca o teres sentido. À nascença retiraram-te esse sentimento, nunca to deram. Ficaste isento desse mal que nos corrói a todos, os humanos, e por consequência nunca foste cobarde.
Quando miúdo não medias as consequências dos teus actos. Trepavas sempre à árvore mais alta, galgavas o fosso mais largo, transpunhas todos os obstáculos porque sabias que conseguias, tudo por não teres medo. Nos testes ias carregado de confiança, era indiferente que tirasses boa ou má nota, porque não tinhas medo.
Agora estás aqui à espera. O orgulho já se misturou com a auto-confiança, sabes que podes fazer tudo.
O cemitério é igual a muitos que viste durante a tua vida. Já viste muitas lágrimas e verteste-as tu próprio. Este está aberto vinte e quatro horas por dia, as pessoas tem a oportunidade de ver os Seus no momento em que desejarem, pelo menos a campa marmórea, branca, cinza ou granítica, fria. Não a quentura dos corpos antes do rigor, mas o frio para lembrar os visitantes que o ente querido nunca mais terá sangue quente, rápido a correr-lhe nas veias.
As grades, de ferro forjado em forma de setas estilizadas, elevam-se ameaçadoras aos céus, como que apontado o caminho aos jacentes. A lua oferece-te uma perspectiva fantasmagórica do ambiente, com a luz a incidir em tons de azul, mostrando a amálgama de cores dos túmulos.
“Carlos da Silva Santos – nascido a 23 de Junho de1933, falecido a 26 de Agosto de 1966.”
Trinta e três anos, a idade que se presume Cristo teria quando desfaleceu na cruz.
É aqui o local indicado. Acendes um cigarro ao mesmo tempo que ouves passos à tua direita. Viras a cabeça e nada vês. Apuras o ouvido naquela direcção e identificas a sua proveniência, mas lá não está ninguém. O som é de passos numa superfície com areia. O raspar é característico e em relação aos sons é raro enganares-te. Outra pessoa começaria a correr daí para fora, mas o teu medo, que não existe, deixa-te investigar.
Os passos, por estranho que pareça, continuam no mesmo sítio, e tanto quanto te é dado a entender, soam a uma marcha de pés invisíveis no mesmo local.
À medida que te aproximas o som está mais nítido; quase que ameaçador. Localizas a origem do som: uma torneira pinga sobre uma garrafa de plástico produzindo o ruído que te chamou a atenção. Ris e voltas-te em direcção ao teu posto de espera e, com surpresa, vês uma figura branca no sítio onde estavas; aproximas-te.
- Obrigado por ter vindo, especialmente nestas condições.
Um sorriso rasga-se no rosto do desconhecido, com uns lábios carnudos que se tornam finos dada a amplitude da abertura; se fosse mulher quando sorrisse pintava as orelhas com batôn.
- Meu caro, sabe que a curiosidade é um dos meus piores defeitos…
Estudas o teu interlocutor: veste um fato branco de linho, uma camisa simples do mesmo material, sapatos de sarja da mesma cor; a cara é estranhamente morena, encimada por fios de cabelo alvos como a neve; os olhos saltam à vista de um azul água que encovam naquela tez escura. Figura estranha, transpira decisão e serenidade.
- Não sei se será um defeito. Estou certo que já foi recompensado por seguir essa curiosidade.
- Não está longe da verdade, mas também já sofri alguns desaires, por isso lhe chamo defeito.
- Tudo o que é em excesso é um defeito em potência, pecamos sempre por excesso ou defeito, é irónico.
Apetece-te avançar na conversa e no que proporcionou o encontro; as palavras do homem de branco envolvem-te.
- Cá estamos nós no sítio onde tudo acaba e começa. Já sei que não é muito dado à metafísica mas eu acredito que aqui começa muita coisa, por isso o convidei para cá vir.
2 comentários:
Os começos surgem onde menos se espera, com surpresa e, às vezes, agrado!
Belo texto,
Um abraço
Não consigo definir a sensação e no entanto tenho o cenário perfeitamente definido no meu cérebro.
Muito interessante.
Enviar um comentário