quinta-feira, 25 de agosto de 2005

Abstinência

Quando só, só me apetece companhia, quando acompanhado aconchego-me na solidão, é a necessidade de espaço
"Esplanada de café" Van Gogh - 1888

Quando estás muito tempo abstinente e provas de novo aquilo que esteve ausente, sentes as sensações ampliadas de uma forma tal que tudo se torna infinitamente claro.

Só sentimos as coisas na sua verdadeira essência quando delas estivemos privados. A pele é um transmissor natural de intimidade.

Já há muito tempo que não estava com um homem. O medo sobrepunha-se a tudo e a possibilidade de um envolvimento, fazia com que evitasse a proximidade. Muitas vezes sentira o desejo de tocar em alguém, mas havia sempre algo, um alarme interno que a retraía.

O último relacionamento não acabara mal, mas de alguma forma criara uma barreira que afastava mesmo aqueles que a desejavam muito. Estava na casa dos vinte e tais. Alta, elegante, bonita, um charme e uma sensualidade que, não fosse aquela barreira inconsciente que levantara, lhe garantiria todos os homens aos seus pés a fazer todo o tipo de galanteios e salamaleques só para a conquistar.

O muro auto defensivo devia-se à perfeição da relação anterior. Bem... como todas as que não são perfeitas, também esta tinha algum dia que terminar. Assim foi, mas a sua teimosia natural pugnava para manter viva a recordação perfeita, fechava-se em copas e não deixava ninguém aproximar-se.

Às vezes é preciso um momento de distracção para se encontrar a fissura que promove a destruição das defesas.

Estávamos em Julho. Sentada a contar as aventuras e desventuras das férias em Paris, estava acompanhada por um casal amigo. Riam-se com gosto e chamavam a atenção do resto da esplanada. O ar do mar dava uma frescura e um cheiro característico ao ambiente, prenunciando uma bela tarde.

- Posso?!
Perto dos 30, moreno, alto, com um sorriso nos lábios e um cigarro na mão, caderno de mercearia na outra, espalhou um pouco mais de luz pela mesa abafando a sombra do guarda-sol.

A anuência geral deu-lhe o lugar desejado e satisfeito instalou-se. Era amigo do casal, para ela, desconhecido. Uma franzir de sobrolho mútuo indicou que ambos eram antagonistas no tema que repousava na mesa. A discussão evolui e ela começa a sentir uma pontada de irritação que lhe nasce na tiróide e lhe salta pela boca.

Ele, divertido, contra argumenta com calma e num tom neutro estudado, provocando-a cada vez mais. Quando provocada, tenta sempre ser a melhor, e como ele lhe põe os nervos à flor da pele, mais vontade tem de ficar com a última palavra, e como golpe fatal, resolve ser condescendente, paternalista. Com um sorriso irónico pousa a mão sobre o braço dele e sopra-lhe:

Porque é que tens que ter sempre razão?!
O toque é automático, elaborado e provoca nele uma reacção inesperada, o corpo é percorrido por uma corrente energética que lhe eriça todos os pêlos do corpo. Fica sem palavras e confuso, afinal não é fácil emudecê-lo.
Abstraem-se de quem os rodeia e continuam com a discussão. Só deseja que lhe volte a tocar, e ela na sua ânsia de razão, que nunca é de ninguém, cada um tem a sua, continua a provocar, a esticar a corda.

- Não olhes assim para mim, diz-lhe em tom ameaçador.
- Assim como, diz ela divertida, deixando-se levar.
- Assim, devolve-lhe o olhar o melhor que pode e levanta-se.

Deixando-a a saborear a conquista prematuramente, pede desculpa e com um “Volto Já”, sai da esplanada com destino incerto.
Fica sentada alheia aos comentários do casal. Só pensa na fórmula que vai usar para dar uma lição àquele convencido, arrogante, teimoso. Com o discurso já preparado, sorri ao vê-lo chegar com um jornal e um livro debaixo do braço.

- Pensei que tinhas abandonando a luta!
- Eu nunca abandono nada, diz com um sorriso e um tom firme. Toma.

Depõe na mesa o Livro. Espantada e incapaz de disfarçar abre-o e vê uma dedicatória.

«Uma surpresa para a maior das surpresas. Já senti o teu toque, a tua pele, prendi a tua voz e a tua atenção, só me falta isto.»

“O Perfume” Patrick Suskind.

20 comentários:

Anónimo disse...

A referencia a "O Perfume" leva-nos a pensar que o Miguel não disse tudo o que queria expressar!.Ou melhor não quiz equacionar se " o sêrmos frageis e dependentes do nosso ego" se refere a ele ou a ela!. O Perfume tem uma historia que acaba por deixar um travo estranho no leitor e o Miguel repete a situação
.Nota positiva

Maria João Resende disse...

Lindíssimo!!!
Depois de te ler na 'Razão' era inevitável a procura do resto ... e o resto revelou-se deveras interessante.
É verdade que podes não ser o melhor do mundo, mas continua a tentar porque mais um bocadinho e consegues!

mjm disse...

Bem conduzido. Daria um bom trecho para um guião ;)
Na caracterização da personagem feminina, fica-me a dúvida: tem-se charme, com vinte e poucos anos? :)

Hugo Brito disse...

Eu acho que o charme vem com a idade dos outros.

Anónimo disse...

devo-te dizaer, muto embora com relutancia que me dexas-te sem palavras.

O quadro um dos mais emblemáticos!,o livro uma referencia! O texto uma soberba ligação entre os dois!

Bacci

Continua

Patioba disse...

Bemmmm, isto hoje está mesmo muito bom!

Será que tem continuação?

Miguel de Terceleiros disse...

Patioba:
Para já não continua, mas os meus contos de um determinado período são sempre huperligados, basta procurar a conexão certa.

Miguel de Terceleiros disse...

MJM:
O charme é genético. Nasce-se com ele e depois é uma questão de o aperfeiçoar. por isso é natural que a minha personagem feminina cresça e vá seduzir mais pessoas com um charme evolutivo.
Quanto mais se seduz mais se aprende a usar o charme, é uma arma como outra qualquer.
Vinte e tais ou não charme há sempre.

Miguel de Terceleiros disse...

Adriano:

Deixar coisas para dizer é uma forma de dar a oportunidade ao leitor para tecer considerações como as tuas. Não vou deslindr o mistério, antes deixar-te com mais vontade de ler...
lê os próximos e se calhar chegas lá.
abraço

noasfalto disse...

Tens razão. És mais acutilante na escrita.

Humor Negro disse...

Uma linha de engate muito elaborada e plena de sofisticação. Bem longe daquela: "Que roupa tão gira que tens, ficava tão bem no chão do meu quarto..."

noasfalto disse...

E com muito charme, ou encanto!

Anónimo disse...

Humor,

vocemesse é só galmour ;)

Anónimo disse...

a anonima éra eu

Miguel de Terceleiros disse...

Será que este engate aconteceu realmente?!

noasfalto disse...

não digam engate senão lá se vai o charme todo...toca a dar uma volta de 180 graus!

Inha disse...

O perfume natural faz parte do charme. É uma química terrível! Boa associação essa Terceleiros. O Das Parfum foi um dos livros que mais me impressiou.

Miguel de Terceleiros disse...

Humor:

A competição é muito alta e temos sempre que imaginar abordagens diferentes.

Anónimo disse...

Miguel
A tua resposta a MJM é precisamente a teoria que defende Honoré de Balzac no seu livro "Mulher de 30 anos" (1832)
Mas desculpa-me tenho de voltar ao "Perfume".Jean-Baptiste mata uma moça virgem em nome de quê?Não entendemos esta morte apenas para se apoderar do seu perfume vital!Até porque naquela época (sec XVIII)a França era um "pestilanço" total, na expressão literaria de Patrick Süskind.O que tu me obrigas a pensar!
Abração

kiko disse...

O perfume a gardénias que pairava no ar, fazia lembrar outros tempos... aqueles que passam e que não voltam, existindo apenas na recordação! Aí, terão o seu espaço, caso contrário, serão adulterados e interromperão o processo de crescimento humano! Abraço