Há muitos anos atrás estava num buraco rodeado de ossos. Para onde olhasse via ossos. Tíbias, úmeros, clavículas, atlas e nada me impressionava. Não havia carne naquela cova excepto a minha, com sangue a correr nas artérias, fervilhante.
Tirava terra, pazada atrás de pazada e nada me incomodava, excepto a pequena sensação de estar a cavar a minha sepultura, mas não me afectava, fazia-o com algumas piadas à mistura. Não tentava animar o espírito, que estava sempre em constante festa.
Uma chuva miudinha ia lavando o corpo nu de preconceitos, vestido de frieza, continuava a cavar.
Século XIX, diziam-me de cima, tudo o que te rodeia é século XIX. Olhava para as ossadas e pensava em Oliveira Martins, Antero de Quental, com dois tiros na boca a agonizar num banco de jardim, e todos os outros da Geração, assim como eu.
Olhei e vi toda a filosofia e cultura desse século e fiquei impávido, sereno.
Um círculo branco, dois orifícios no centro sobressaíram no castanho da terra. Um metro e oitenta e dois de profundidade, a minha altura exacta. Não consigo ver nada para o exterior, só olhando para cima.
A minha boca está ao nível de um crânio que numa posição anti natura, para quem foi enterrado pelos cânones, sorri. O maxilar, ligeiramente descaído, já me parece um grito em forma de sorriso.
No fundo, na terra que revolvi, está o círculo branco a chamar a minha mão. Sem luvas, sempre, para poder sentir a textura da terra e o branco osteológico pego nele. A minha consciência agita-se e tudo o que aprendi abalroa-me. O plástico é extraído do petróleo a partir da década de 30 do século XX. A proximidade cronológica provoca-me um arrepio frio e o meu estômago faz-me vomitar o pão e a manteiga prontamente absorvidos pela terra.
Uma coisa só, só uma me ocupa o pensamento “o meu avô foi contemporâneo destas ossadas”.
Tomar consciência da possibilidade de contacto físico ou social entre estes restos e o patriarca da minha família incomoda-me, muito.
Saio do buraco, ou tento, já não sei.
Anos passados voltei ao local e lá, em câmara ardente, estava o cunhado do meu avô, acabado de falecer.
11 comentários:
Falta-te um botão, diz o roto ao nú... Estás na minha shit list de escritores blogueiros que viciam. Tu e o Garfanho. Se não o conheres segue o link Garfiar, no meu blog.
É isso! viciante!
negro!
Muito bom, Mr. Poe!
Um abraço.
⊆⊇ Por mais que ache estranha a coincidência ⊆⊇ de ter um cemitério a servir de paisagem ⊆⊇ mesmo em frente à minha janela ⊆⊇ nada me garante que não trabalhes por lá. ⊆⊇ Espectáculo, a tua escrita [...] tétrica, como o diz o meu amigo Micróbio. ⊆⊇
Ω Inté Ω
Estranha escrita nos dias que correm, carregada de significado e muito boa.
Até breve.
My name is Bones, James Bones! De resto, continuas num período alto! Quanto às temáticas, parecem ter a ver com a altura sentimental e eremitária por que passas... ou não! Abraço grande, com saudades!
Micróbio: depende com leres!
Humor: Já está registado e já lá fui tens razão! Aliás razões tens todas!
abraço
Raquel: ;)
Amie: mais que negro é escuro!
Armando: Obrigado
Espectro: Se calhar trabalho, vê lá...
Absconditum: Bem vindo. Faço por isso, mas não sei se mereço tantos elogios.
Quiosk: Está intimamente ligada a umas coisas estranhas que passam à minha frente! Não tenho culpa de tropeçar na inspiração!
abraço
Voudaquiparaali: Estás no caminho certo... Quem me conhece bem sabe distinguir quase tudo.
beijo
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