segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Pai

Assentava praça em Gondarém. Tinha uma série de “clientas” fixas que faziam valer a pena dedicar-se só àquele local. Era capaz de fazer uma viagem até Campanha e voltar à sua postura, em vez de optar pela solução mais confortável, esperar pelos clientes que não faltavam na estação.


As senhoras da Foz que lhe aclientavam a viatura tornavam o negócio bom o suficiente para a sobrevivência da sua casa, as viagens casuais funcionavam mais como gorjetas, recompensa da sua fidelidade àquela praça de táxi.

Aproveitava, todos os dias, e levava a esposa de 25 anos, 25 anos mais nova que ele, para a loja onde trabalhava, também na Foz.
Conhecera-a quando ela tinha 19. Andava enterrada na droga e na prostituição. Crescera na Sé, mais exactamente na Rua Escura, fazendo parte de uma das muitas famílias numerosas daquela zona. Cresceu e tornou-se numa rapariga bonita, apetecível, aos 14, devido às más companhias e fraqueza de espírito típica da idade, optou pelo caminho dos estupefacientes. Escusadas foram as vigias constantes dos irmãos e as sovas do pai para evitar a progressão em direcção ao fundo do poço. Teimosa e agarrada ao vício abraçou a prostituição até ao dia em que entrou no táxi para ir comprar o cavalo.
Ficou-se pela estrebaria que era a casa do taxista. Um pouco ao jeito de Ted Mundy, o homem recolheu-a e tratou dela, e passados largos meses, quando estava já limpa de tudo, ou quase, com o amor e a dedicação dele, apresentou-o à família.

As famílias humildes são muito orgulhosas em relação às esmolas, mas aquilo era um milagre. Ele pusera a menina outra vez no caminho. Automaticamente foi aceite no clã e no bairro, estava finalmente em casa.

Tenho uma filha, conta-me com a lágrima no canto da alma, que um homem não chora à frente de outro. Está em Lisboa com a mãe
- A minha primeira mulher
e com o padrasto e quando o vem visitar, a menina queixa-se
- ó paizinho, ele bate-me
e as marcas não enganam. Tem marcas no corpo que se passarem vão continuar no interior durante muito tempo.

Com a raiva a provocar tremuras no canto da boca, fustiga-me e a ele em simultâneo.
Sabe doutor, há dois anos tive uma trombose e felizmente até recuperei bem, mas não tenho a força que tinha.
De facto não se nota que sofreu o AVC, fala correctamente e não tivesse ele dado a informação nem desconfiaria de tal facto.

- É que mesmo não podendo fazer o que um homem deve fazer numa situação destas, eu juro-lhe, pela alma dos meus pais e pela felicidade da minha filhinha, que vou lá baixo em Agosto, é quando tenho férias, e vou tratar da saúde àquele filho da puta!
Ouvi com os sentimentos em frangalhos e como já estava à porta de casa disse-lhe:
- Dê-lhe umas por mim.

Paguei a corrida e afastei-me com a revolta a provocar as lágrimas. Pensei muito no assunto, e nos dias que se seguiram não consegui deixar de pensar no senhor e na filha. Um coração tão bom e altruísta tinha uma recompensa destas.

Romanticamente idealizei a situação. Sem forças para acertar o passo ao padrasto da filha, o senhor entrou em casa dele e espetou-lhe um balázio, à queima-roupa, em cada um dos cotovelos, e cuspiu-lhe:
- Bate agora em alguém ò Filho da Puta.

9 comentários:

Anónimo disse...

É mais um caso da vida adversa para alguns e que no fundo não o merecem.

O sonho! Ainda bem que não passa de um sonho!

Humor Negro disse...

Podia muito bem ser verdade isto...

Hugo Brito disse...

Um final a la Sin City, apropriado para esse Sacana.

Poor disse...

só para dizer que em Gondarém não há praça de táxis!:)
(que comentário mais idiota...mas já sabes que gosto!)

mjm disse...

Tu és um animal de escrita!
A 'coisa' jorra-te!....
É impossível acompanhar-te.

Anónimo disse...

Clap Clap Clap CLap

Anónimo disse...

a anonima fui eu

Patioba disse...

Que grande fotografia ;)

hmscroius disse...

muito bom final