quinta-feira, 4 de agosto de 2005

Guarda



"Viver das memórias é como guardar um cemitério" Hugo Pratt

Fazia a ronda como era costume. Primeiro pelo talhão vinte e um, descendo para o catorze, acabando no sete. Recomeçava no vinte, quinze, dez, cinco, até que os visitava todos.

Tudo em ordem, afinal o que poderia correr mal num sítio daqueles?! Era uma vida como outra qualquer, a única diferença era conviver com os mortos.

São os vizinhos mais sossegados que se podem arranjar, costumava dizer quando lhe perguntavam se não tinha medo dos inquilinos do espaço guardado.

Não era difícil a sua missão. Calcorreava os talhões e verificava se tudo estava bem. Evitava que algum vândalo esclarecido viesse pôr em causa o descanso da eternidade.

Não acreditava que houvesse vida para além da morte ou coisa que se parecesse, mas era o seu trabalho e debitava da cartilha: “não somos nada nesta vida”; “do pó viemos e ao pó tornaremos”; “descanse em paz”.

Jovens, velhos, homens, mulheres, crianças, nenhum lhe provocava qualquer tipo de emoção, só não podia ver-lhes a cara. Não suportava ver a cara de um morto, pálida, de queixo caído depois de tanta vida que lhe correra nas veias.

Acabada a ronda, gostava de deambular, observar a pluralidade morfológica de campas. Cruzes e anjos, pietás e Cristos cravejados, enfim tudo o que se vê aqui, um exorcismo, a corda de fé que puxa as almas para o outro mundo, o melhor.

A quebra de rotina pode muitas vezes afectar o destino de um guarda de cemitério.

Alterou a ronda e quebrou a monotonia que lhe devorava a mente.

Rondou na diagonal e quando chegou ao talhão 7 algo lhe chamou a atenção. Uma campa era um amontoado de ferro, vidro, madeira e plástico, esculpindo um quadro de alto relevo infernal. Em vinte e um anos de guarda nunca reparara naquela escuridão na alvura dos mármores.

Largos minutos foram passados a contemplar as nuances pictóricas dos diferentes materiais. Algo lhe desvia o olhar. Um corvo aterra no mármore vizinho. Ao encarar o guarda, sorri com sorriso de corvo e voa para longe.

Podia ter seguido o voo do corvo, mas o tempo parou na data da morte da pessoa ali sepultada, 26 de Junho de 1949, um dia antes de ter nascido.

“Competente guarda deste cemitério durante 21 ano”.

Sem vontade e com o pavor na íris leu na campa seguinte, sete palmos de fundo, escura, negra:

“Competente guarda deste cemitério durante 21 ano.

26 de Junho de 1990.”


11 comentários:

Hugo Brito disse...

Já leste o jornal de amanhã?

Poor disse...

magnifique!!!!

Humor Negro disse...

... and this is the twilight zone.
Excelente conto.

Bulbucus Íbis disse...

não conhecia o teu blog, está execelente. As histórias são maginificas. Será que o guarda fazia 21 anos de serviço?

hmscroius disse...

bem gizado, este

armando s. sousa disse...

Excelente conto, Miguel.
Vê-se que por aqui, que o calor não afecta a produtividade nem a qualidade.
Um abraço.

Anónimo disse...

     Ω     Este texto está muito bom     Ω     apenas tive um percalço na sua interpretação:     Ω     peço explicações para a última parte:     Ω     “Competente guarda deste cemitério durante 21 ano”. Sem vontade e com o pavor na íris leu na campa seguinte, sete palmos de fundo, escura, negra: “Competente guarda deste cemitério durante 21 ano. 26 de Junho de 1990.”     Ω

     ∇ Inté ∇

Miguel de Terceleiros disse...

Hugo: Até tenho medo de ler mas vou ver. se calhar uma árvore é capaz de me dar a sombra e a luz que quero!

Amie: ;)

Humor: Welcome to it!

Miguel de Terceleiros disse...

Micróbio: Bem vindo sejas!
abraço

Voudaquiparalai: Obrigado ;)

Ana:Obrigado, era nescusado escrever em triplicado, eu percebi!
:) beijo

Miguel de Terceleiros disse...

Bulbucus ibis: bem vindo! obrigado e se repares há uma passagem que diz isso "Em vinte e um ano de guarda nunca reparara naquela escuridão na alvura dos mármores."
Abraço

Dr.croius: imaginação a toda a prova, depois conto-te.
abraço

Miguel de Terceleiros disse...

Armando: bem vindo sejas de volta, já estava com saiudades! O calor acho que aumentou a inspiração!
abraço

Espectro: bem vindo! Compreendo a confusão, mas a cova do lado estava aberta com a data da morte do guarda, a personagem da história. é o dia seguinte à realidade ficcional da história. ;)