O Edifício - "O Nome da Rosa"
Jean Jacques Annaud - Umberto Eco
Malaquias acordou com um ligeiro formigueiro nos pés. Tudo estava escuro e não se conseguia mover. Não lhe causou estranheza, já que por várias vezes a posição em que adormecia provocava pressão nas articulações e nervos, adormecendo o corpo completamente e já se sabia, era aquele despertar do torpor dolorosamente masoquista. Primeiro sentia um formigueiro, começava a recuperar a sensibilidade, depois brincava com as mãos batendo com elas em qualquer lado sem sentir nada. Achava graça a esta parte. Lembrava-lhe a infância de noviço a brincar com os ex-votos do Santo Amaro do mosteiro, só que estes não eram de cera.
O catre onde dormia era duro, coberto a palha, onde pululavam bichos de todas as formas e feitios. A cela de dimensões reduzidas possuía uma janela que estava sempre fechada, e de Inverno não deixava passar uma gota de luz que fosse.
Malaquias era bibliotecário no Mosteiro. Passava a vida rodeado de livros e fólios. Catalogava, lia e relia e tinha o hábito, para além daquele que envergava, de escrever resumos que cuidadosamente arquivava alfabeticamente.
Se vivesse no mundo extra-muros, seria garantidamente colega de tertúlia de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, dada a quantidade de cultura que absorvia, mas a humilddae religiosa não lhe permitia tais liberdades. Sabe o que sabe e não faz publicidade, nem tem com quem.
Começa a sentir uma espécie de raspagem nas pernas, e em simultâneo frio nos pés, no entanto continua sem conseguir mexer nada.
Serão as baratas a trepar em direcção a um sítio mais húmido e quente como é costume?! Muitas vezes acordou com esses infectos insectos a tentar aninhar-se e só de pensar nisso arrepia-se todo. Hoje a sensação é diferente, e como não consegue mover-se, ainda, nada lhe resta senão deixar que o sangue corra e lhe anime as carnes.
O Abade bem lhe dizia para purificar as carnes com oração e alguns castigos físicos, e ele bem se esquecia disso. Com o tempo dedicado à leitura descuidava essa e outras regras monásticas.
Esta sensação que lhe estava a fazer cócegas na zona da bacia seria um castigo por ler livros que não eram aceites pela abadia?! De futuro teria de ser mais cuidadoso com os deveres da Ordem e não os esquecer.
Um vazio de pânico instalou-se na sua caixa torácica. O pecado que cometera e estava ainda sem confesso. O desejo que lhe percorrera o corpo quando vira a jovem lavadeira que, uma semana antes, visitara o mosteiro. Todo o seu corpo correspondera à intensidade do olhar usado para apreciar as formas da cachopa. Era isso, devia estar a a ser castigado.
Era estranho que estivesse naquele estado de dormência há tanto tempo. Podia ser a confusão que o sono lhe causava que aumentava o espaço temporal. Para além disso, ao formigueiro, sucedia uma espécie de calor, e até agora sentia cada vez mais frio. Um frio que lhe chegava agora ao queixo.
Sente um sabor a terra de vasos. O nariz corresponde e reconhece o aroma neutro do húmus, esse solo carregado de substrato, e de repente todo o mundo se ilumina, exclusivamente para o olho esquerdo. A imagem, mais que a luz cega-o, e devolve-lhe as trevas, finalmente.
- Então, ainda falta muito para acabares de limpar esse esqueleto?!
- Mais vinte minutos e o Malaquias está pronto para a fotografia.
10 comentários:
interessante vida a dos mosteiros...
Um esqueleto com alma. Coisa rara nos dias que correm. Muito bom Miguel.
Vinda do Humor Negro, directamente para o humor obscuro... grrrr
Gostei muito da evolução da narrativa!
Claps & kisses
Pois fica a saber que o Malaquias tem um novo companheiro que está sempre ao seu lado. Só lhe falta o nome...
Hoje acordei como o malaquias!
Tou a ver que tás em excelente forma, as férias tão a "elevar.te".
Carlos Alberto?
Um abraço
Irmão Malaquias, Venerável Jorge, uma biblioteca de um livro de Eco. Reformulação ao jeito de um ficcionador que desenterra história:) Boa amigo!
Por acaso esta narrativa fez-me pensar no "Nome da Rosa".
Excelente.
Amie: nem imaginas quanto!
Humor: e ainda por cima estava a sorrir!
Mjm: bem vinda! obrigado pelo elogio.
Galecius: e que tal adso?!
Noasfalto: estou dentro!
Hugo: dde vez em quando dá-me para estas coisas!
Armando: grazie
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