Ao frio e à chuva, ao sol e ao vento, todos os dias saía de casa para cumprir a sua obrigação. Calcorreava as ruas da Baixa incansavelmente apregoando o jornal.
Não ganhava muito com o que fazia mas era sempre o suficiente para pôr o pão na mesa lá de casa. Os filhos, três, esperavam com impaciência a chegada do progenitor, que chegado a casa, uma casa térrea com um quarto, lá para os lados do Prado do Repouso, se sentava nos degraus da entrada a contar-lhes as histórias que lia no produto que vendia.
Não era um homem instruído, possuía a quarta classe, mas era senhor de uma imaginação prodigiosa. Os filhos frequentavam a escola primária e ficavam atentos à interpretação das histórias do pai. Descodificava a linguagem dos jornalistas para uma acessível às crianças.
Nunca lhes contava as histórias da guerra, preferia mantê-los na inocência da idade, mais tarde iria pô-los ao corrente. Ainda era cedo para começar, deixá-los lá com as brincadeiras de trepar às árvores e a descoberta na rua de um mundo sempre novo.
A mulher era costureira. Cozia e remendava os casacos e os vestidos das famílias das casas da Rua do Heroísmo. Esperava pacientemente que o marido chegasse com o pecúlio do dia para ajudar às despesas que a costura não rendia o suficiente para a comida. Para a roupa dos catraios lá ia ajudando a esmola dos clientes que cediam roupas usadas dos filhos. O que ela e o Ardina ganhavam chegava só para a comida.
Um dia a espera tornou-se insuportável. O marido tardava em chegar. Geralmente chegava por volta das nove, no máximo às nove e meia, mas isso foi num dia que ficou distraído na conversa com um cliente. Era um homem comunicador que gostava de dar duas de letra com qualquer pessoa, e tinha conversa para todos.
Nesse dia ela começou a ficar angustiada, já passava das dez e nem sinal do esforçado trabalhador. Os miúdos sem clara noção do tempo lá continuavam nos degraus à espera das histórias, mas nem a sombra provocada pelos candeeiros de gás indiciava a chegada.
Por volta da meia noite a senhora, a secar as lágrimas para os filhos não perceberem, chamou-os para dentro. Inventou uma desculpa fugaz para justificar a ausência do marido e depois de os ter aconchegado na sala, foi para o quarto chorar.
Muitos anos depois, nunca se soube o que acontecera ao valente Ardina e as crianças transformaram-se, graças ao esforço da mãe, em rapazes bem constituídos e cultos.
Um dia um deles foi pela primeira vez à Baixa e qual não foi o seu espanto quando viu o pai, como que petrificado na esquina, junto à Igreja dos Congregados, a segurar um jornal, cigarro ao canto da boca, a boina a ensombrar os olhos…
Esculpido em bronze ali estava, ao frio e à chuva, ao sol e ao vento, todos os dias.
10 comentários:
é, conheço o sujeito...
Gostei muito.
O ARDINA é uma figura que me é muito querida!
Tanto pensou na desculpa que havia de dar á pobre coitada, pelas noitadas no cibercafé a comentar blogs que empedrenhiu............
sorry, continua s ser muito sol na moleirinha ;)
Anonymous said...
este era eu
Hoje tou doido.
Terceleiros: julgo que viste o comentário que fiz hoje ao humor negro. A minha senda continua porque ao ler O Ardinda adivinha quem me veio à ideia??? O Gavroche!!! (http://membres.lycos.fr/molloy/)
Totalmente fora do contexto mas queres? É a vida.
Abraço
Passo quase todos os dias por ele :-)
Um abraço, pelo conto inspirado na estátua do ardina :)
Amie, Maria Heli: sempre olhei para ele com admiração!
Aloe vera: acho que estás lá!
Joe: Já falamos sobre isso!
Humor: estamos a falar do mesmo ou em lx também existe!?
Voudaquiparali: ah pois é
Carlos: bem vindo e para ti uma grande vénia!
Mic: obrigado
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