segunda-feira, 15 de agosto de 2005

O Frasco

"Cinzas" - Edvard Munch 1894
Todos os dias cobiçava aquele frasquinho, atraía-o e não sabia porquê. O rapaz era feliz, tinha tudo o que sempre desejara e o que mais desejava era aquele frasco. Tinha oito anos e todos os amigos olhavam com inveja para os brinquedos último modelo e os jogos de computador acabados de chegar aos escaparates das lojas.

Era mimado como uma criança de oito anos podia ser. Os pais adoravam-no e não havia nada que lhe recusassem. Tinha uma vida feliz recheada de todas as coisas boas da vida que uma criança desta idade pode desejar. Os pais ao contrário de muitos não estavam separados, viviam felizes e em harmonia, com empregos estáveis que permitiam passar tempo de qualidade com o pequeno.

Conheciam-no tão bem que até lhe adivinhavam os pensamentos. Quando notavam aquele brilho nos olhos, momento seguinte, tinha o que desejava.

Até ao dia…

Da janela do seu quarto via-se a casa em frente. Na janela do 2ºandar apareceu um frasco, vítreo com reflexos alaranjados. O líquido, fantasmagórico, parecia flutuar e um vento interno agitava-o provocando nuances, como se algum ser lá dentro habitasse.

Desejou-o desde o primeiro momento em que lhe pôs a vista em cima, mas os seus pais não estavam presentes para lhe adivinhar a cobiça.
Lentamente, por não ver o desejo satisfeito, começou a definhar fisicamente, mas sempre com p pequeno cérebro a engendrar forma de obter o misterioso objecto.

Como trepava muito bem, fruto de muitas brincadeiras nas árvores com os amigos, que nesta idade não há colegas, decidiu que ia roubar o frasco.

Durante dias a fio observou as movimentações da vivenda, que não existiam. Estranhamente chegou à conclusão que a casa não era habitada, muito embora alguns objectos fossem movidos. Seriam duendes invisíveis, como nas histórias que o pai lhe contava, que ao abrigo da sua vista mexiam nas coisas?!

Da janela o frasco continuava a chamá-lo, cada vez com mais intensidade.
Um algeroz passava a escassos centímetros do caixilho que enquadrava a sua obra de arte. Então porque não trepar? Seria uma questão de minutos e a coberto da noite teria sucesso concerteza. Consciente marcou para a noite seguinte.

Saiu de casa depois de ter escutado em sobressalto as movimentações dos pais. Três horas de espera deram-lhe cabo dos nervos mas aumentaram a adrenalina.
O coração estava pequenino e sorrateiro chegou à parede. Tocou no algeroz frio e sentiu um calafrio na espinha. Virou-se com medo de estar a ser observado. Ninguém. Respirou fundo e começou a ascensão. Com muito esforço chegou ao vislumbre do objectivo. Estendeu a mão, tacteou e estranhamente nada encontrou.

Procurou outra vez, e com alívio sentiu quente e frio no contacto com uma superfície lisa em forma de pêra.
Um ranger assusta-o, desequilibra-o e faz com que caia na sebe em segurança. Ao seu lado, também incólume, cai o frasco, agora tingido de vermelho.
Senta-se, e com as mãos a tremer, olha o frasco. Fica maravilhado, finalmente tem-no em sua posse, é seu e ninguém o vai impedir.

Algo perturba o ambiente. Olha em frente e vê rapidamente a sua casa a apodrecer, a cair, até se transformar num monte de cinzas.
Nem pânico sente quando as suas mãos já enrugadas começam a descarnar.

13 comentários:

Anónimo disse...

Fiquei curiosa e resolvi fazer uma visita. Belos textos de ficção.De repente, vieram-me à memória Maupassant e Lovercraft. Também já fui fã dos mestres do terror.
Parabéns.

Patioba disse...

Da Razão para cá ;)

Bom blog!

Linkado!

Poor disse...

definitivamente, o crime compensa em algumas situações, ou será que foi intervenção divina?!
ps.a surpresa é sempre melhor...:)

Humor Negro disse...

Escancara as portas para deixares a clientela entrar!! ;-)
Moral desta história: cuidado com aquilo que desejas, porque podes vir a tê-lo. ahahahahahahahah

Anónimo disse...

Encontrei boas ficções aqui. Voltarei sem dúvida :)

armando s. sousa disse...

Esta história tem um pouco de um filme que vi este fim-de-semana com os meus filhos:Charlie e a Fábrica de Chocolate, e também com a fragilidade humana, de desejar sempre aquilo que não tem, mesmo que nessa busca destrua tudo.
Um abraço.

Papo-seco disse...

Porra, porra e porra

Mais um blog para acompanhar diáriamente

Mais um blog com textos de cortar a respiração.

A meio logo apetece ir ler o fim para parar a ansiedade.

Também foi o Humor Negro (óbviamente) que aqui me conduziu

Anónimo disse...

toma, pega-te!!!! pra não seres garganeiro....tinha tudo tinha tudo mas enfrascou-se....essa é que é essa!!!!!!!!!!!!!

tive que vir aqui, não emigrei, entenda-se , vim em turismo da Razão ;)

noasfalto disse...

Quem tudo quer tudo perde...

Miguel de Terceleiros disse...

inha: nem compares, fico corado! Bem vinda!

Micróbio: quem tudo quer tudo perde.

Patioba: welcome! obrigado

Miguel de Terceleiros disse...

Amie: realmente tens razão!

Humor: não podia vir mais a propósito!

Doug: e serás recebido de braços abertos!

Miguel de Terceleiros disse...

Armando: tenho que ver o filme, afinal é do Tim Burton!

papo-seco: estou a inchar com tanto elogio!

Aloe vera: eheheheheh

Miguel de Terceleiros disse...

no asfalto: não diria melhor!