Para quem não sabe o que é um Moleskine.
Jacarandá foi muito bem aceite pelos leitores dos meus blogs, Terceleiros e Geradores. Os comentários puseram-me a pensar. De facto não foram comentários insípidos e reveladores de uma leitura transversal ou diagonal, como lhe quiserem chamar.
Pensei e analisei o que me escreveram e há alguns reparos que devo fazer.
Umberto Eco em “Seis passeios no bosque da ficção” faz referência a um leitor que toma por verdadeiras as palavras que Eco usa para descrever a fuga de Jacopo Belbo n’ O Pêndulo de Foucaut, do mesmo autor. Refere-se especificamente à fuga deste personagem pelas ruas de Paris, e numa determinada rua descreve-se um incêndio com uma barreira cronológica bem definida, ou seja a hora o dia e o local estavam bem explícitos. Ora o leitor, imbuído pelo realismo do escritor, escreve-lhe uma carta dizendo que nessa noite, a essa hora, no sítio determinado por Eco, não houve incêndio nenhum.
Alguns comentários às postas, Jacarandá e Jacarandá #2, assumem como certa a minha participação directa no conto. Mea culpa, tenho-vos habituado mal, ou então os blogs estão mal habituados, ou ainda, já consigo ficcionar de tal forma que soa a verdade.
Gabriel García Márquez, n’ O Perfume da Goiaba, escrito em conjunto com Plínio Apuleyo Mendonza, diz o seguinte: «A ficção tem sempre um fundo de verdade».
Já antes de ler esta passagem, comentara por várias vezes com o Quiosk – nos nossos bilóquios – que para se fazer ficção é necessário pegar em âncoras reais. Isso é que vai criar o alicerce, não podemos pretender criar uma realidade do nada, do vácuo.
A ficção ou se nasce com ela, ou é difícil de se encontrar. Quanto mais vivências recolhemos, mais probabilidades temos de produzir ficção de qualidade, e para a transpor para o papel, é necessário ler este mundo e o outro, e ganhar influências.
Salmoura disse-me que sempre fui um precoce na literatura. Muito embora eu já o soubesse, não imaginava que tinha adquirido vocabulário antes dele, até porque sempre o achei mais avançado e disciplinado do que eu, no entanto a leitura criou uma estrutura própria dentro de mim, levando-me a interessar-me cada vez mais por ela e pela escrita. Não é segredo para ninguém que me exprimo muito melhor na escrita.
Na minha opinião, um bom ficcionador deve ter os dois pés bem assentes na terra e uma capacidade inventiva fora da média . muitas vezes vou na rua em silêncio e deparo-me com situações básicas e fico a imaginar estórias à volta delas, quando dou por mim já estou encostado num sítio qualquer acompanhado do meu cadernito ou do meu Moleskine, se andar sem mochila, a criar uma história, onde a única coisa aparentemente real é a situação que origina o pensamento.
Neste preciso momento, estou parado na estação da CP de S. Romão. Um senhor com um penteado lambido, dos seus sessenta anos, cara encaixilhada de óculos de massa, grossos, castanhos como árvores, olha para o comboio em que estou. Assumo automaticamente que é um trainspotter – pessoa que se dedica a verificar se os comboios chegam à tabela. Este senhor fica estático cerca de oito horas por dia, movendo-se para escrever no seu caderninho a relação de trânsito dos comboios, ir à casa de banho e alimentar-se. Já está tão ritualizado que sabe exactamente quando ir cumprir qualquer das tarefas que lhe desviem a atenção para a sua excepcional tarefa auto-imposta.
Lá está ele parado a olhar para o meu comboio, mas hoje há algo que vai explicar a sua devoção a esta actividade que conta já vinte longos anos.
Do meu comboio sai uma senhora com entrada garantida nos trinta. Dirige-se ao senhor e pergunta-lhe qualquer coisa, que não percebo e só posso adivinhar, como que horas são – ainda não consigo ler nos lábios.
O senhor com cara de espanto, intercala lágrima de saudade com lágrima de alegria e abraça a senhora. Deixa cair o caderninho no cais, que deixara de fazer sentido, e abraça-a. Neste momento o meu comboio põe-se em movimento e sinto que nunca mais os vou ver.
A única realidade disto tudo é o senhor que está parado na estação, nem parece esperar alguém, só lá está e permanece.
Inspirou-me e assim é imortalizado sem o saber.
10 comentários:
Sobre a realidade das ficções: apesar de Eco, Borges, Sabato, Marquez (sendo que os 3 últimos são a trilogia sul-americana de referência em que, para mim, o maior é Sabato pois chega a Dante), gostaria de recomendar-te, sobre viagens, a leitura de Somerset Maugham - sem dúvida um vulto épico.
Quanto à escrita e a evolução notória que tens sofrido ao nível da ficção:
Atenção Metáfora Cliché prestes a ser libertada:
Uma fotografia a cores diz uma coisa, a preto-e-branco outra. A forma como o diz não tem nada a ver com a máquina fotográfica, é uma ficção do fotógrafo.
Para rematar: "Em toda a verdade existe 99% de ficção" - mas essa é só a minha imodesta opinião.
Abraço.
Post: Scriptum Pingo Doce mais logo?
Cria miúdo...
Continua q nos deleitas!
Abraço da Zona Franca
OPS!
Nem sei se me enganáste (caí que nem um patinho), se me assustáste (era uma história de novela emocionalmente violenta), ou se simplesmente me agradáste (com ficcção muito bem escrita).
Pois espero que tenhas sempre âncoras tão frutíferas como aquela :oD e mais felize tambem ;o)
BJs do Sul litoral
Miguel
Estás dentro do caminho e do estilo certo.Mas um pouco de integração nos problemas que nos afligem seria o ideal.Força jovem!....
Hugo: Está registado, obrigado pela ajuda que me tens dado! abraço Guru Hirto
Freddy: ninguém me pára!
Voudaquiparaali: Moleskines cada um tem o seu, mas há uns muito giros com pinturas de tipos conhecidos como o Van Gogh, Leonardo, etc.
beijo
Sara: Sabes que às vezes as âncoras prendem-nos demais! Inspiração não faltará.
beijos do Litoral Norte
Adriano: Vou tentar. obrigado e abraço.
A qualidade literária faz parte de ti e vai-se aprimorando à medida que vais escrevendo cada vez mais... Sem dúvida um nome a reter, caso continues por este caminho. Quanto às conversas que temos, não são mais do que teorizadoras das escritas tuas que vou lendo, inspiradas em grandes vultos da humanidade!!! Modesto, ãh!? Abraço
Quiosk: estavas tão bem caladinho! Deixas-me sem palavras!
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