Por entre as pedras da levada corriam pequenos fios de água. Não era muita mas era de alguma forma suficiente para alimentar os pequenos insectos que pairavam na água. Há quem lhes chame alfaiates e nunca se percebeu a razão de tal nomenclatura.
Com delicadeza pousam os apêndices na água e aos poucos, com as movimentações, vão tecendo cortinas e mantos de água. Com muitos insectos desta espécie tecer-se-iam massas brutais de água mas, como neste momento há pouca também há poucos alfaiates, assim o rio está condenado à seca (pelo menos até à próxima estação das chuvas).
Há uma reciprocidade entre os alfaiates e a água, são eles que a criam e ela é o seu combustível.
Os fios de água em contacto com as pedras da levada, dão origem, como num ritual de acasalamento e criação, ao lodo e ao musgo. Os alfaiates, com as inveja no olhar, desejavam ser eles a tecer o musgo, mas deviam contentar-se com a sua missão: criar água para criar lodo e musgo.
Nesse dia o sol estava alaranjado, melhor, quase castanho, fruto do fumo e da cinza que conjugados davam uma tonalidade estranha ao ambiente. Aos poucos as árvores foram ficando cinzentas, o verde desapareceu e, a partir de um certo momento, não se via um palmo à frente do nariz.
As gotas escorreram-lhe pelo corpo acariciando com cuidado a pele e, por momentos, criou-se a ilusão que seriam estas mesmas gotas a esculpir aquele belo corpo. Com a delicadeza à flor da pele sacudiu as formas que não sendo as perfeitas conseguiam encarcerar o olhar.
Querer o que é perfeito é uma perda de tempo. É preferível desejar algo à mediada das nossas capacidades porque tudo o que é perfeito, no fundo, tem um defeito que vai desiludir.
O cabelo molhado tornava-a sexy. Ela é sexy, mas a forma como o cabelo caía sobre a cabeça bem feita, tornava-a infindavelmente desejável. Os olhos castanhos, consoante a quantidade de luz que sobre eles incidia, podiam atingir uma tonalidade de verde azeitona, adquirindo aos poucos nuances hipnóticas.
Desde o primeiro momento em que foi vista soube que era desejada e ele não precisava de saber, estava-lhe no sangue.
Bonita, genuinamente bonita, com sorriso enigmático e um olhar que por vezes lhe trespassava o coração e outras a alma.
Não se conheciam pessoalmente mas, de alguma forma, sabiam muito sobre o outro. Há empatias que assim funcionam.
Ele, galante e movido pelo Super Ego a que não resistia, ia-lhe dizendo, com o olhar, todas as coisas bonitas que tinha guardadas há muito tempo, à espera de alguém muito especial.
Não que ele quisesse ficar com ela até ao fim dos dias, não era desses, mas gostava do que via, acima de tudo, do que observava.
4 comentários:
"Com a delicadeza à flor da pele sacudiu as formas que não sendo as perfeitas conseguiam encarcerar o olhar."
Boa!
E assim é a vida... a eternidade é o momento recordado!
Acho sublime o movimento do alfaiate na superfície livre da água. Gosto.
não é preciso passares a vida toda com alguém para que seja eterno. a eternidade é feita de pequenos momentos, como disse mfc.
simplesmente temos a tendência para complicar.
os humanos são assim. têm a mania das grandezas.
beijo
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